domingo, 15 de fevereiro de 2009

Regras.

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[ Às vezes quando você me toca,/ eu não consigo me controlar./ O desejo me torna fraco./ Querido, é tudo ou nada agora./ Eu não quero correr e não posso me afastar./ Você estaria partindo o meu coração se me deixasse agora,/ mas eu não posso esperar para sempre./ A quem você pensa que está enganando?/ Querido, é tudo ou nada,/ é tudo ou nada agora. ] * [ Cher ]


Não entro no jogo para ter medo.
Se existe algo no mundo a que me recuso é ser covarde.
Entro porque acredito e ajo acreditando.
Até o último suspiro eu tento. Tento e tento.
Essa a forma mais feliz de se viver.
Não se evita o sofrimento evitando a vida.
Princípios de guerra.

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Por Raphaël Crone.

Missa de Domingo.

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[ “Todos os deuses são um deus”, disse ela, então como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para as minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas as deusas são uma deusa, e há apenas um iniciador. E cada homem a sua verdade, e Deus com ela”. ] * [ Marion Zimmer Bradley ]



Não costumo frequentar as missas.
Não sou católico e nem mesmo sou cristão.
Mas como é sabido desde que o mundo é mundo
E onde há sabedoria se sabe,
Deus é Deus onde quer que estejamos
Independente do nome pelo qual o nomeamos
E a Mãe é sempre a Mãe, seja ela chamada de Maria ou Cibele.
Morando em uma cidade pequena, próxima a uma grande e antiga catedral,
Gosto de ir à missa de vez em quando.
Isso de certa forma sacia uma voz dentro de mim.
É estranho ver como um culto aparentemente morto,
Cheio de repetições e pessoas perdidas
No momento de entoar os cânticos e recitar os versos
Sem saber quando devem se sentar ou levantar,
Pode falar à alma, quando se busca ouvir com atenção o que ele sussurra.
O Pai é o Pai e a Mãe é a Mãe e eles habitam em corações, não em templos humanos.
Eles são maiores que nossa engenharia. E ainda assim, onde o invocamos, eles estão.
Se os deuses são invenção humana ou se nós somos invenções deles,
Não me preocupa muito saber.
Acima de tudo, a figura do que é Mistério representa a esperança.
É muito triste para nós vivermos sem esperança.
A vida deve ser fria e o amanhã, solitário.
Algo em que acreditar pode ser um consolo, mesmo para mim que, como quase todo mundo, às vezes não acredito em nada.
Coisas da vida. Uma nova existencialidade, discussão dos séculos.
A religião, sim, em meu conceito pode ser um erro. Os deuses não.
O que eles respresentam não: a caridade, o amparo, a amizade e o amor.
Coisas que precisamos ontem e precisaremos amanhã.
O mundo cai: cabe a nós sustentá-lo com nossos braços,
Como os titãs sustentavam a Terra nos tempos ancestrais.
Mas, onde está a força dos nossos braços, Mãe?
O mar é grande e meu barco, pequeno. Mostre-me a esperança.
Descerre-me o véu além do Samhain e ornamente-me com as flores da primavera.
Imbolc e Ostara. O calor, as fogueiras: Beltane.
O arrebol: Litha e as colheitas, o pão de Lugh. Lughnassad. Mabon, a cornucópia.
E Samhain, que tudo recomeça, de onde viemos e para onde vamos.
O incenso e os sinos, a batina dos padres e suas danações e salvações.
As irmãs que queimaram por mim.
Não há ressentimento, apenas há a oração do menino.
Ele está em todos os corações e Ela responde por todos os nomes.
É neles que me apóio. Um consolo que encontro quando a noite vai alta
E quando tudo está escuro, quando o amanhacer ainda vai longe.
Existencialidades, novamente. Palavras da salvação.
O Senhor está no meio de nós e a Senhora com ele.
E onde eles estão, em segurança estou também,
Filho e menino que sou da esperançosa magia que é acreditar no que não se vê
E aguardar. Respostas. Um ato de contrição.
Requiescat in pace. O réquiem de cordas. O final e o recomeço.
A Lua vai subindo e seguindo sua rota. E está em meu coração.
Pensamentos ao som da música melancólica e do piano frio.
O cheiro da fumaça. Uma vida e outras muitas não lembradas.
Muitas recordações e eu, ainda aqui, sentado.
Muitas vidas em uma noite de domingo.

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Por Raphaël Crone.

Poema Pobre de Aniversário.

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[ Salvo se formos cretinos, morremos sempre na incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra. ] * [ Gustave Flaubert ]

[ Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. ] * [ Clarice Lispector ]

[ O sonho encheu a noite,/ Extravasou pro meu dia,/ Encheu minha vida/ E é dele que eu vou viver/ Porque sonho não morre. ] * [ Adélia Prado ]


O passar dos anos pode ser perigoso?
A estrada costuma ir ficando mais escura ou os olhos mais cansados?
Tendenciosamente depressivo, o bicho humano.
Tendencioso e ingrato. Costuma esquecer-se do que é bom.
Depressivamente procura formas de não viver.
Creio que também deve haver virtude no passar dos anos. Deve haver redenção e aprendizado.
Consequente sabedoria.
Mesmo para um ainda jovem como eu.
A luz pode ser vista quando se tem olhos para vê-la,
Mas ela sempre existe, independente de nossa vontade.
As flores exalam seus perfumes, ainda que não os notemos.
O mundo continua o mesmo, ainda que o vejamos diferente
E diferente, ainda que para nós dê no mesmo.
Existe graça nessa tal de vida e a cada ano que me passa
Rio mais dela, mesmo quando ela ri de mim.
Quando choro, choro mais profundamente
E quando me levanto, o faço mais brilhantemente.
Armado de hombridade valente. Orgulho e reparação.
Há graça nessa tal de vida. Basta que nos disponibilizemos a rir dela.
Ela certamente se dispõe a rir conosco.

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Por Raphaël Crone.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Os Anos.

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[ E você é como um Jesus dos anos 90,/ Você curte suas psicoses;/ Como você se atreve?/ E você experimenta conceitos como quem escolhe canapés,/ E você come suas dúvidas como sobremesa;/ E é só eu que acho ou está quente aqui?/ Bom, pode ser que você nunca seja ou tenha um marido,/ Pode ser que nunca tenha ou segure um filho.../ Somos acordos temporários. ] * [ Alanis Morissette ]

[ Sou eu, estranhamente noturno. ]

O meu restrato de criança na parede do quarto.
Tomei-o entre as mãos. 4h57 da manhã.
Não sei bem exatamente por quê, mas,
Entre uma página e outra d'O Físico de Noah Gordon,
Chorei sobre este meu retrato infantil.
Duas amargas lágrimas molharam o papel.
Pensei que viriam outras mais, mas não.
Foram apenas duas lágrimas solitárias.
Contemplei a foto por mais um instante.
Tão eu ainda! O mesmo cabelo, apenas mais escuro agora,
A mesma expressão, quase 20 anos depois.
Guardei o retrato. Nostalgias. Existencialidades.

Um suspiro, um pensamento dissonante, uma conformação.
E O Físico continuou então contando-me sua história.
Sua longa trajetória. Medievalidades.

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Por Raphaël Crone.

A Ti, Padre.

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[ Lento em minha sombra, com a mão exploro/ Meus invisíveis traços. ] * [ Jorge Luis Borges ]
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[ Voy a curarte el alma en duelo,/ Voy a dejarte como nuevo/ Y todo va a pasar ./ Pronto verás el sol brillar,/ Tú más que nadie merecer ser feliz . ] * [ Shakira ]


[ A ti padrezito, mi corazón.
Tus ensenãnzas, tu honestidad.
Mi desesperado deseo de ser joven, de ser gente.
Tu monotonía, tu melancolia en el caer de la tarde,
Sueños que fueran tan brancos...
La forma como aprendi a volar, seguro por tus viejas manos,
Un rato de libertad. La inmortalidad de tus sonrisas,
Tus preocupaciones, la lucha por mi pan nuestro de cada dia.
Mio y tuyo. Nuestro. Nuestra sencilla felicidad.
Mamá, papá y yo, infante. Ella, tu y yo, hecho hombre.
Todo el Yo, mi reflejo en tus pelos tan blancos ahora.
A ti, padrezito. Mi amor, el beso que te doy,
Mi siempre terna reminiscencia.


La profundidad de tuyo océano particular, mayor que yo, tan pequeño.
A ti, padrezito, mi corazón. ]



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O cheiro do café que você prepara de manhãzinha,
O acordar tão cedo, o admirar do canto dos pássaros...
Simplicidades arrebatadoras.
A invasão de todos os meus sentidos por sua voz tão terna,
Outrora tão rígida e imperiosa,
O afago de meu-seu ego. Id e superego, onde você habita em mim, papai.
As dores e o cansaço da velhice,
Uma vida de trabalho, o suor e as lágrimas por mim, para que eu fosse criança.
Os esforços incessantes para que eu fosse jovem.
As dores e privações para que eu fosse homem feito.
Minha tão-chamada ingratidão, imperfeitíssmo que sou.
Nem José Dias definiria-me melhor.
Meu tão constante desejo de lhe agradar! Eu sou você.
O formato de minhas mãos e de meus pés.
Os nós dos meus dedos, nós que somos tão iguais! Genética.
O orgulho que eu guardo e que você sopra em mim,
Um coração valente. O beijo e as lágrimas que honram sua encanecida fronte,
Meu presente, meu desejo: ver-lhe um sorriso mais a cada dia,
A razão de minhas tentativas, a frustração e o êxito de minha juventude efêmera.
A você, papai, o pouco que sou, o muito que você me tornou.
Meu amor e meu sorriso mais doce. A você.
A você, papai, meu coração.
A criança, o jovem e o homem. Infinita aceitação.

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Por Raphaël Crone.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Mundo Obsceno.

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[ Se não vivessemos perigosamente,/ tremendo à beira dos precipícios,/ não estaríamos nunca deprimidos,/estou segura disto,/ mas seríamos cinzentos, fatalistas e velhos. ] * [ Virginia Woolf ]
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[ Vivemos as nossa vidas,/ fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos:/ é tão simples e tão normal como isso./ Alguns atiram-se de janelas,/ ou afogam-se, ou tomam comprimidos;/ um número maior morre por acidente,/ e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou,/ com muita sorte, pelo próprio tempo./ Há apenas uma consolação:/ uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem,/ contra todas as probabilidades e expectativas,/ abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginávamos,/ embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas),/ saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras,/ muito mais negras e mais difíceis./ Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã,/ mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais. ] * [ Michael Cunningham ]


Às vezes, sinto necessidade de estar triste,
Assim como as outras pessoas têm necessidade de morrer.
Tudo às vezes.

Às vezes, o silêncio e a instrospecção doentia lavam-me por dentro,
Preparam-me para continuar a plantar,
Ou pelo menos, escondem-me dos meus bichos-papões,
Dos monstros do meu armário, carregam-me para um mundo particular, um mundo obscenamente irreal e maravilhoso
E me permitem dormir em paz por um minuto.

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Por Raphaël Crone.

Volta.

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[ Caríssimo,

---Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor.
---Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler.
---O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom.
---Quero dizer isso — toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida.
---Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

Virginia
]



Eu realmente odeio esta parte, mas ela se aproxima outra vez.
O mal dos poetas, o mal do século, o mal da morte.
Más-formações sentimentais, moralmente imprecisas, precisamente amorais.
A angústia, o aperto no meio da noite,
O terror noturno: o medo da solidão.
Você, que com braços tão vividamente amorosos me enlaçou outrora,
Você, que se preocupou com meu sono e meu apetite,
Você, que se fez um comigo; meu medo: onde está você agora?
A terrível bruma que toma conta da cidadela, o vôo rasante das harpias.
O som melancólico do piano e o som gutural da tuba,
Uma melodia candeciada e sepulcral, efemérides do que teve forma.
Esta deprimente onda que me varre, que me impede de deixar a cama,
Que não me permite pensar e nem escrever,
Que me faz fugir da luz do dia, que me faz chorar violentamente durante a noite.
Ela chega e toca meu ombro.
Sem pedir licença, ela adentra a casa, instala-se em minha alcova,
Faz uso dos meus objetos e lança sobre mim seu terrível encanto.
E eu me rendo a ela uma vez mais (a felicidade brinca de esconde-esconde comigo), leitor.
Deito-me ao lado do morcego negro, ele me abraça,
Eu gelo: tudo é entendimento e monotonia. Tudo é escuridão,
Sertões intransponíveis. Serestas mortas.
Eu odeio esta parte, mas ela me pertence. Devo alimentá-la, como bom pai.
Devo esperar a próxima primavera e por agora, apenas esperar.
Um novo dia onde eu possa voltar, uma nova volta,
Esperança que não existe, mas que, ainda assim, a minha imaginação não deixa de esperar.

[ INTRO: ] *Carta de Virginia Woolf a Leonard Woolf, adaptada por Michael Cunningham em seu livro, The Hours.
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Por Raphaël Crone.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Onde a Vida Começa.

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[ Let me teach you how to fuck. ] * [ Madonna ]





A exibição de um corpo nú. Os corpos caídos ao redor.
O teor e a teoria do que é instinto e animalidade.
O que ninguém aprende, o que é nato. Incontestável.
A exacerbação dos sentidos, a volúpia dos ânimos,
O arrebatamento das sensações.
O gozo vigoroso e as vigílias continuadas,
O que é sexo, o que é fogo, o que arde,
Posto que é chama,
O que se multiplica e povoa a Terra. Passatempus.
A busca cotidiana. O vício e a virtude,
Antítese do que salva e de quem é Salvador,
Entrega feita pelas mãos do que é o Gênesis.
Luxúria, libidinosos momentos de união concuspicente,
O auge da mágicka e o encontro do amor.
Expressão de afeto e paixão desenfreada.
Eis o que é sexo: a vida, contínuo movimento,
A beleza da existência e o amor que se faz verbo e carne
E que vem habitar entre nós.


[ FOTO: ] *Madonna: "SexBook ", publicado em 1992, em suporte ao álbum "Erotica". Fotografia de Steven Meisel.

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Por Raphaël Crone.

Au Maître Munch.

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[ Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol –/ o céu ficou de súbito vermelho -sangue –/ eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta –/ havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade –/
os meus amigos continuaram,/ mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade –/ e senti o grito infinito da Natureza. ] * [ Edvard Munch ]
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Existencialidades tétricas. / A erupção que acontece quando menos se espera, / A expressão mais angustiante do que é ser humano. / O caos interior, o domínio dos titãs. / O mergulho nos mundos de Mnemosine e a sega da foice de Hades. / A viagem além-Estige. / Um momento de desespero, um norueguês cosmopolita, / Um momento onde toda a humanidade para em virtude de uma semelhança universal: / A insuficiente segurança que é tentar se ocultar em meio à insegura escuridão da vida.

[ FOTO: ] * O Grito, de Edvard Munch (1893).

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Por Raphaël Crone.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Retrato de Uma Queda.


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Não pense que não, eu vi exatamente.
Contemplei segundo a segundo a forma como você caiu.
Fui a testemunha mais íntima do modo como se operou a sua queda.
Vi suas pernas não serem fortes o suficiente para amparar o peso de seu corpo.
Vi o seu resvalar, o seu tropeçar,
O desesperado movimento dos seus braços para segurar o que já não tinha mais segurança neste mundo.
Vi o estrondoso silêncio e o abafado gemido produzidos pela vergonha de um momento de humanidade.
Senti em minha boca os fios de sangue que escorreram dos rasgos abertos em sua pele molhada.
O saibro de sangue, o amargor do ferro. Hemoglobina. Essências.
Permaneci impassível, imóvel, observei em sequência a chuva da rua lavar sua ferida e levar o seu sangue esgoto abaixo.
Não o ajudei e não o consolei. Não ajuntei seus livros espalhados
E não procurei secar seu maço de cigarros ensopados, inúteis agora.
Não evitei quando pisei seus óculos e senti um frêmito misto de agonia e gozo quando ouvi seus aros partirem-se sob meus pés confortavelmente calçados.
Não senti ódio e nem alegria e nem me rejubilei ou lamentei.
Impassivelmente silente e mortalmente imóvel.
Testemunhar: eis o significado do verbo que aqui não expressa ação, mas inatividade.
Nenhuma sombra de vida ou movimento de minha parte,
A vida relutantemente movimentando-se em você.
Antes de virar as costas ainda tive tempo de ver: o levantar-se, o ato de recompôr-se discretamente.
Você passou a mãos pelos cabelos desalinhados, procurou por seus óculos e soltou uma indivisível exclamação de lamento ao vê-los partidos no chão.
Limpou as roupas sujas, lambeu o sangue dos braços agora nús, pela licença que as mangas da camisa lhes concederam,
Empilhou os livros um a um e colocou-os sob o braço protetor e desprotegido de homem adulto.
Ignorou os cigarros imprestáveis e deu uma última olhada para a cena.
Suspirou: foi tudo o que eu pude ouvir, derradeira queixa.
Saiu, vagarosamente, direção oposta à minha e não olhou para trás.
Também eu apenas relanceei uma última vistoria, não sem um lampejo de sorriso nos lábios.
Vida engraçada! Não pude deixar de pensar sobre isto mais tarde.
Não pude deixar de compôr este ingênuo e soturno retrato,
O retrato de sua soturna e ingênua queda.

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Por Raphaël Crone.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sua Significação.

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[ Seu toque, seu gosto,/ Sua respiração, seu rosto,/ Suas mãos, sua cabeça,/ Você é doce./ Seu amor, seus dentes,/ Sua língua, seus olhos,/ Sua mente, seus lábios/ Você é ótimo, você é o paraíso na terra./ Eu esperei toda minha vida por você,/ Meu beijo favorito./ Sua pele perfeita, seu sorriso perfeito./ Acordo e você está perto de mim,/ Me aconchego em seus braços e volto a dormir./ Eu me apaixonei por você e por tudo que você é,/ Nada posso fazer, estou realmente apaixonado por você./ Quando você está perto de mim é como o paraíso na terra,/ Você é o paraíso,/ Você é o paraíso na terra. ] * [ Britney Spears ]
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O modo como você muda o meu dia: simplesmente fantástico.
De triste a exultante, de fraco a super-homem,
De tépido a muito quente,
De desconsolado a completamente esperançoso.
Meus pensamentos mais soturnos ganham asas e partem,
Muito distante posso divisar suas formas,
Outrora tão próximas e incômodas.
A dor mais pungente é consolada e remediada,
A ferida mais profunda deixa de verter sangue.
Você é a minha alegria e a minha salvação.
A quem temerei?
Seus braços e seu sorriso são a canção mais doce que alguém já entoou.
Você é o meu paraíso, feito para mim,
Privativo e escondido, onde não sou intruso ou estranho.
Minha praia de cinema, meu oceano particular,
Minha montanha mais alta e meus dias de impassível felicidade.
Me perco em seu abraço e durmo ouvindo o seu coração.
Me perco em outra dimensão e viajo com o povo das fadas,
Acordo e vejo um sonho feito real. Você dissipa a angústia
E sacia a vontade inclemente.
Alimenta o meu melhor e me faz ser bom, como você o é para mim.
Palavras não poderiam ser completas, para dizer o que meus olhos dizem a você.
Todos os clichês tornam-se inevitavelmente necessários e permitidos.
Você é o céu. Meu paraíso.
Definitivamente a quebra do meu submundo, a morte de Hades.
A ruína da escuridão e a luz primordial. A poesia em mim.
Você é o tudo. O imprescindível. O necessário.
Meu francês e meu espanhol, minha inocente virtude.
Objeto de zelo e adoração, meu pedestal e meu humano peregrino-companheiro.
Eu o beijo outra vez. Sigo beijando-lhe com lábios e lágrimas,
Pois me mostrou o amor mais belo, o sentimento mais puro
E a verdade mais impressionante que ninguém jamais poderia mostrar-me aqui.

[ FOTO: ] * Raphaël Crone - Dezembro/ 2008.

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Por Raphaël Crone.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Um Instante Impressivo.



Vi um hippie-chic na rua hoje, encontro estranho.
Ele não fazia malabarismos e não vendia artesanato.
Vestia Giorgio Armani e exibia um anel brilhante em seu mindinho.
Usava uns óculos alternativos e carregava um violãozinho surrado.
Olhou-me com uma fome animal, quando passou por mim,
Luxuriosa, quase desesperadora.
Não lhe dei nenhuma moeda. Não lhe vi os olhos.
Vi-o mais tarde: acho que ele vendeu o tal anel para almoçar aquele dia,
Ou deixou-o em alguma alcova, quem sabe,
Alguma que eu nunca saberia onde encontrar.

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Por Raphaël Crone.

Emboscada.

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[ Eu vou te perseguir,/ Te esfolar vivo,/ Mais uma palavra e você não sobreviverá./ Eu não vou aliviar sua dor,/ Eu não vou acalmar sua tensão./ Você vai esperar em vão,/ Eu não tenho nada que você queira. ] * [ Blue Foundation ]


Observo a noite densa e silenciosa por detrás de um poste ambíguo,
Luminária e esconderijo, eis a sua serventia.
A cidade é engolida pelas brumas, hora após hora,
Torna-se tão vaga quanto Silent Hill. Sangue e gás.
De onde sairá você, Pyramid Head?
De onde virá o primeiro golpe inesperado? Ainda não tenho olhos nas costas, evolução medíocre.
Um pouco de cultura pop em meio ao silencioso assombro da névoa.

Eu espreito a sua passagem como o gato espreita o rato,
Com os olhos em chamas, fascinantemente vidrados.
Ao longe, ouço alguns tons de música, sons de instrumentos sintéticos e de voz arrastada.
Canções de fantasmas melancólicas, eróticas, quase realmente amedrontadoras.
Drácula deve rondar esta região nesta noite.
Que ele não me encontre nesta rua hoje (calafrio, calafrio),
Não hoje, que procuro por você. É meu dia, não o seu e não o dele.

Coloco uma das mãos frias no bolso, acendo um cigarro.
Misturo a fumaça com a bruma, liquidificando a sensação de perda.
Uma perda gasosa, heterogênea,
Onde cada parte se esvai sem pedir licença ou sem dar um aceno de adeus.
Com a fumaça se esvai meu temor e minha memória,
A não ser a sua face, esta ainda permanece comigo.
Permanece, por que preciso reencontrá-la nesta noite.

Não há vozes, não há passos, não há definitivamente Pyramid Head.
Esta cidadezinha que assombro me assombra dramaticamente.
Gela-me a espinha e sussurra-me coisas incoerentes
Em ouvidos que nem eu sei onde exatamente ficam. Time to go.
Abandono a ambiguidade do poste que me oculta.
Agradeço aos fantasmas que cantaram para mim, que embalaram a minha espera.
Resigno-me e parto. É hora de lhe caçar. É hora de lamber os dedos novamente.

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Por Raphaël Crone.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Nós.

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[ Eu sou um caminho de cinzas,/ Queimando sob os seus pés./ Você é o único que caminha sobre mim/ E eu sou a sua única estrada. ] * [ Björk ]
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[ Então o enigma pode ser solucionado/ E você me empurra para isto:/ Um estado de emergência,/ Onde é tão belo se estar./ Estado de emergência, é onde eu quero estar. ] * [ Björk ]


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Aquele que tira a camiseta quando dança, / Que morde a sua orelha e que lambe o seu rosto, como um gato. / O rapaz que olha os seus olhos com a maior ternura do mundo e que em meio à fumaça segue seus movimentos atentamente. / Sentimentalmente sexual e sexualmente sentimental. / O sorriso interior, o blush involuntário. / O que divide com você as alegrias de garoto e as amarguras de homem adulto. / O crescimento harmonicamente conflituoso, as censuras perdoadas. / A paixão gigante, que pisa os dissabores e que embala nosso sono abraçado. / Eu sou aquele que lhe diz: "Tudo se resolverá" e eu sou o mesmo aquele que lhe beija quando tudo é resolvido, enfim. / Sou o que a vida ensina a ser homem, sou valente e frágil, pateticamente incompleto. / Sou a sua complacência pulmonar, a sua sístole e a sua diástole. / Sua circulação de luz, sua respiração de vida. / Sou o menino que sorriu inocentemente ao seu chamado. / Sou um com você e fora de você nenhum outro poderia me alegrar. / Sou a busca da felicidade, sou a batida, aquela que você ouve quando põe a mão em seu peito e quando põe os ouvidos em uma concha do mar. / A batida estranhamente natural da existência. / Sou você e você é eu. / Somos um em espírito e quase religioso amor, somos a consolação da espécie. / O jugo de Jesus, que segundo ele mesmo disse outrora, é leve. / Sou aquele que abrilhanta os seus dias e você é o que enxuga minhas lágrimas indiscretas. / Somos abençoadamente privilegiados, eu por tê-lo e você por me ter. / Somos escandalosamente felizes, por que abrimos nossas portas e janelas ao nosso amor. / Somos frutos da luz e somos insetos da noite. / Somos o futuro que sempre chega, o presente que nunca passa e o passado, que jamais morreu.

[ FOTO: ] *Raphaël Crone - Julho/ 1991.

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Por Raphaël Crone.