sábado, 26 de novembro de 2016

Antoinette



T'es mon délire, mes ténèbres, mon midi radieuse;
Mon magazine de mode, monVogue, mon piédestal.
T'es ma moitié plein verre de vin, le goût du chocolat dans ma bouche,
Ma guitare appuyée contre le côté de ma tête.
T'es ma photo de Marilyn sur le mur, mon dévouement, mon gémissement,
Les cheveux blonds qui chatouille dans mon nez,
Le ronronnement de R de mon français.

T'es les feuilles désalignement, le rire à l'aube,
Les perles de mes dents et le corail de mes lèvres.
Ma satiété et mon agitation, ma nostalgie et mon mal de mer;
Ma dynamite et mes murs en ruines.
Tu es mon souffle de vie et la chanson de ma peau, t'es mon corps, humm...
Mes oiseaux de paradis, ma soirée à Montmartre, t'es mon amour.

T'es mon amour: ma fatigue et ma maison, ma contemplation.
T'es mon amour, t'es mon amour.


Notre Grand Amour est Mort




Tudo o que eu represento é apenas uma ilusão que escoa entre os seus dedos,
Como água da chuva que escorre por ruas silentes,
Da qual os transeuntes fogem apressados.
Tudo em mim deve se desvanecer.
Nenhuma memória será persistente o suficiente.
Tornar-me-ei em ser etéreo, em fumaça que rodopia diante de seus olhos e depois se consome,
Todo o encanto durará um segundo na história do tempo e depois emudecerá, qual espectro entre as sombras da madrugada.
Olhe para mim, toque-me. Sinta minha pele quente e se lembre dos porquês pelos quais me desejou.
Como as páginas de um livro se encolhem diante das chamas, assim encolher-me-ei, serei cinza, ferrugem e osso.
Quando a noite findar, apenas os amantes estarão despertos;
Tudo o mais é bruma e cantilena, vozes moribundas e perplexidade,
Um último adeus e uma suprema e derradeira desilusão.


domingo, 6 de novembro de 2016

Neon Night



Dance comigo sob este céu neon:
Azul, rosa, vermelho e verde. Elétrico. Iridescente.
Não há paredes que nos encerrem, não há domos, não há abóbodas.
Sua maquiagem cintila em meio à noite, lábios incandescentes, olhos como faíscas assombrosas;
Suas unhas longas arranham o meu peito nu.
Uma batida eletrônica, titânica ecoa das profundezas do Tártaro e enche nossos ouvidos de hipnótico desejo, incontrolável fome.
Você fura o seu dedo, uma gota brilhante escorre e eu a recebo em minha língua. O seu sangue vai manchando a minha boca, como um batom borrado.
'Baby boy, you're so cool', você me diz em sussurros.
Então, segura com força a minha cintura, eu puxo os seus cabelos para trás e me aproximo do seu pescoço.
Um beijo e depois uma laceração.
E aí se inicia a fantasmagoria.


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Marianne




Não há expiação. Ande por essa estrada escura, Marianne,
Fique atenta para as sombras que se movimentam atrás das árvores,
Fique atenta para aqueles homens parados embaixo daquela ponte.
Você fez escolhas ruins e sabe, bem lá no fundo, que merece ser castigada. Não sabe?
Somos todos crianças assustadas, molhadas e tremendo de frio,
Oprimidas pelo peso de nossas escolhas. Não podemos nos furtar ao fardo que temos que carregar.
Encontre o seu destino, Marianne, levante as mãos para que sejam cravados mais alguns pregos. Entre ruas sujas e lençóis desalinhados, suspire por perdão, sangre como penitência.
Carregue a sua humanidade sobre os ombros, dilacere suas vulnerabilidades com os dentes e siga.
Abrace sozinha o seu futuro. Todos os demais têm seus próprios infernos para cuidar.


terça-feira, 1 de novembro de 2016

Um Espécime Dilacerado



Alto. Magro. Belo. Macabro.
O francês falido, uma espécie de jovem pirata de terras firmes. Um cigarro entre os lábios,
Volúpias e sorrisos incompletos,
Sua alma é um banho de sangue. Viscoso, malcheiroso, putrefato.
Corra, vadia. É melhor você correr agora. 
Viciado em seduzir, um adolescente descartável crescido. Anda entre nuvens cinzentas, abomina a luz do dia. Cortinas fechadas, luzes apagadas, um zumbi desejável cujos lábios vertem sangue. Um banho de sangue.
Rembrandt pintou autorretratos. Retratos pintam-se em linhas desconexas.
Corra, vadia. Esta é a hora em que você deveria começar a correr...


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Miragem Noturna



Eu vejo você rodopiar diante do meu rosto, misturado à fumaça do meu cigarro;
Você irrita os meus olhos e impregna as minhas roupas e meu cabelo com um odor desagradável, mas eu continuo implorando por mais.
Por um minuto, eu penso em deixá-lo, mas é inútil: eu volto de joelhos para mergulhar outra vez nas sombras do lago, que é o seu coração, negro como a noite.
Minhas mãos envolvem o seu pescoço, emaranham-se em meios aos cachos dos seus cabelos:
Eu o enrolo, eu o aspiro e eu desmaio enlevado por essa beatitude.
Você é meu vício, a minha solução e o meu doce problema.
Meu amor de perdição, o blues que me espanca à meia-noite, minha religião profana e minha cética peregrinação.
Formas rijas que se desvanecem em meu abraço, como a bruma. Sacrossanto pesadelo e penitência: a esperança de respirar aliviado novamente, porém sem nenhuma sombra de expiação.


A Canção do Incendiário




O meu maior desejo é abrasá-lo: transformá-lo em cinzas ao envolvê-lo com meus braços;
Tudo em mim está em constante combustão, uma ignição espontânea, ativada pelo simples vento que sopra meus cabelos para lá e para cá.
Mais queria eu incendiar as ruas, em um breve segundo fazer evaporar aquela lágrima em minha mão, derramada naquele momento mudo.
A ponta dos meus dedos em contato com o seu rosto é qual blues para os meus ouvidos: um efêmero toque abre rasgos em sua pele e torrentes vermelhas escorrem ensopando suas roupas.
Eu sigo em seu encalço, perigoso e me movendo; desejo queimar nossa alcova em tons de azul, vermelho e laranja, de forma que nenhuma chuva possa apagar.
Desejo consumi-lo - comê-lo, bebê-lo, eviscerá-lo, fazê-lo uma carne comigo. Carne rota. Queimada. Ignóbil.
Restos daquilo que é o muito desejar.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

Adentro



O problema da maioria das pessoas é que, diante dos olhos alheios, elas julgam-se com demasiada complacência. Pensam ser muito especiais e não o são. Nada, ou muito pouco, têm que as diferencie da turba. Mas, ó, mistério tão misterioso! Nem às paredes elas confessam, quando envoltas pela penumbra de sua soledade, que, de fato, são vazias e insossas e que, se tão desesperadamente tentam mostrar-se valorosas e interessantes para os outros, tudo deve-se ao imenso, supermassivo buraco negro que as engole por toda a existência. Pretendem ser rainhas e reis em seus tronos ilegítimos, mas, na verdade estão despedaçadas, sendo mastigadas por suas próprias desilusões, assim como o Cronos de Goya mastigava os seus próprios filhos em desvairada melancolia.


Tereza



De sua juventude, Tereza tinha aprendido três coisas. A primeira é que a beleza é como uma droga ilícita: gratuita por muito pouco tempo. A segunda, que deveria evitar envolver-se com pessoas comprometidas ou recentemente solteiras. A terceira coisa que aprendeu (e talvez a mais útil) foi a esboçar aquele sutil desinteresse pelas suas conquistas amorosas. Se as tratasse mal, elas não voltariam; se demonstrasse entusiasmo demais, tampouco, elas voltariam, pois julgariam-na desesperada e pronta a se apaixonar e assim se afastariam por medo de se envolver ou por se assustarem com tal possibilidade. Assim, Tereza aprendeu desde cedo, e não sem eventuais decepções, que o amor realmente é um jogo. Não de emoções, mas, puramente, de inteligência.


domingo, 17 de julho de 2016

Réquiem



Eu gosto da sua juventude, dos seus traços firmes e imaculados,
Eu me alimento dela, como Nosferatu, que vive nas sombras.
Deus está vindo para você, em sôfrega cadência muda de tambores desmaiados, através do toque dos meus lábios vermelhos.
Você fecha os seus olhos em um abraço frouxo, os cabelos desalinhados caindo por sobre os meus braços.
Para que os anos não passem para mim,
Eu dreno, silenciosamente, a vitalidade que corre em suas veias:
Eu bebo de você e, à medida que você desaparece, eu, finalmente, passo a viver para sempre.




Entranhamento



Eu nunca fui bom em verbalizar o que eu sinto. 
Eu sou como um vulcão longamente adormecido e que acabou de despertar:
Cinzas, névoa, fogo e escuridão. 
O meu apocalipse é fabuloso: eu vomito a minha lava para dentro de mim.




sábado, 28 de maio de 2016

Serial Killer / Opus 2



Ela abre os olhos: a sala é larga e melancólica, banhada em uma estranha luz vermelha;
Tão vermelha que o contato dela com a sua pele tem o saibro de sangue nos lábios.
Ao canto, ela vê uma cadeira vazia. Uma mesa do outro lado,
Alguns instrumentos impossíveis de se reconhecer em meio à penumbra, que repousam em uma prateleira alta, que se esgueira contra a parede.
Ela, com as mãos para cima, atadas por uma corda presa em um gancho no teto.
Um gancho de açougueiro.

Em algum canto há um rádio. E, curioso: o som que emana dali não combina com a atmosfera lúgubre do recinto.
É uma batida viciosa de música eletrônica, com violinos e sussurros mixados,
Uma letra ininteligível, mas em uma estrutura pulsátil e metálica. Um canto de loucura, deveras.
O chão parece sujo de manchas largas e escuras. No canto oposto à cadeira, há um amontoado de material estranho, úmido e impossível de se reconhecer, tampouco.
Eventualmente, a lâmpada vermelha pisca. Apaga. Reacende em seguida, para novamente apagar-se.

A última lembrança que tinha era a da avenida sonolenta e erma e a de um carro aproximando-se.
Cada passo que ela dava, tentando andar mais depressa, soava como uma batida de um martelo em uma bigorna: os seus saltos altos contra o asfalto enregelado.
O motorista parou ao seu lado, perguntando onde ficava a Avenida Wellington. Ora, aquela era a Avenida Wellington, dissera ela.
Risadas, pedidos de desculpa pela confusão, ela se afastando aliviada e apressada e o carro lançando-se contra ela no momento seguinte.

Os seus saltos altos não estavam mais lá, assim como a sua bolsa. O seu vestido havia sido cortado e jazia aos seus pés. Apenas a sua lingerie cobria o seu corpo esbelto.
A sala era fria, o toque dos seus pés descalços contra o chão a fazia tremer insistentemente, por mais que tentasse dominar-se.
Por um momento, moveu um dos pés e ele tocou uma das manchas escuras. Estava quase sólida, mas ainda era o resíduo de algo líquido. Viscoso. Espesso.
Estava a ponto de recomeçar a chorar quando uma porta abriu-se no alto de uma escadaria. A sombra de um homem apareceu contra a luz. Ali começava a fantasmagoria.


Um Alerta



Ele é como um carro em chamas, correndo freneticamente por uma estrada vazia e escura. Uma pira incandescente e rubra, como uma vida que foge da extinção.
Belos olhos, cabelos e barba negros, pele pálida. Corpo esguio, pronto para ser despedaçado e atirado aos cães, para depois recompor-se, qual estúpida chama de um desejo bruxuleante.
Sua risada é como o prenúncio de um trovão distante, que estremece a noite, dela se alimenta e, logo, desaparece. Ele é gracioso e excêntrico,com um quê de misterioso, convicto e encarcerado nas entranhas de uma pilha de carbono melancólica.
Tudo o que existe em seu interior é negror e névoa; tudo o que ele é deve ser evitado. De suas veias, escorre veneno rubro e viscoso, que mancha o chão sob os seus sapatos empoeirados.
A ilusão de sua presença é um convite para conhecer o verdadeiro deus, para tocar a sua face efêmera e, então, chorar de alegria nas profundezas do seu amor.
Ele alimenta-se de juventude, haja vista que os anos para ele passam, ainda que mais lentos que o usual. Ele é feroz e impaciente, agressivo e impiedoso. Não se compadece com lágrimas e nem com súplicas. Ele é a última curva antes do amanhecer, envolta entre a fumaça dos seus cigarros, afugentada pelos seus dentes à mostra.
Ele é formoso, mas obscuro e instável como uma sonata de Bach. Bem farias em fugir dele, humano incauto. Apesar de humano ele também ser, ele é sombra e pó. Ferrugem e osso. Um último gemido e o silêncio. Não mais que um estranho sonho e a derradeira quimera, afinal.


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Serial Killer / Opus 1



Somos feitos do mesmo tecido que constitui a madrugada, você e eu:
Roído, remendado, manchado de sonho e embriaguez.
Eu espreito o barulho que os seus sapatos produzem contra o asfalto enregelado: night stalker.
Volta e meia, você olha para os lados. Em cada esquina você aperta o passo,
Breves olhares desconfiados, enquanto se dirige para longe da calçada.
Seus braços cruzados sobre seu peito carregam um casaco escuro; sua bolsa pendurada sobre um ombro,
Seu descuidado esquadrinhamento do perímetro morto que a cerca se pendura sobre os dois ombros,
Fazendo-a curvar-se ligeiramente sob a tensão de estar vulnerável em horas desmaiadas, que de longe precedem o nascer do Sol.

O que faz uma moça bonita assim tão sozinha, tão assustada na calada da noite? - eu me pergunto.
Você gostaria de ter a certeza de que está invisível sob o manto escuro de Nix, mas - pálida ironia - eu a observo. Você não é invisível para mim;
Pelo contrário: brilha como diamantes sob o Sol.
A forma de suas curvas se insinuam, ainda que involuntariamente, sob esse vestido preto apertado.
De você emana uma sensualidade assustada, porém duradoura, como uma onda que banha uma ilha nua e desolada. Uma espécie de Dália Negra.
Outras antes de você já estiveram diante do impassível delirar dos meus olhos. E outros.
E todos tombaram.

Olhe para os lados enquanto caminha, bela dama da pele ebúrnea, ostentando o frescor agradável das loiras. Serão seus olhos claros? Escuros?
Em breve, de brilhantes eles se farão opacos. De assustada você se fará desmaiada de pavor.
Porque eu sou a noite; eu sou a mão escura, sou o vórtice vermelho que molhou as ruas de Whitechapel, sou a insensatez de Dahmer, Ramirez, Gacy, Bundy.
Eu crio o terror e a noite é negra; nela os medos proliferam-se como larvas em carne podre.
Eu sou criado pela cultura pop: procuro fazer da minha efemeridade algo eterno. Olhe para os lados, mas não olhe para trás.
Eu a observo na calada da noite. Eu sou o seu after party.

[ ... ]

A avenida adormecida continua desenrolando-se sobre o clac dos seus saltos. Clac clac clac, tacones lejanos. Dou partida no motor, estou indo encontrá-la.
Eu realmente gosto disso. Você vai me convidar para entrar quando a hora chegar?



domingo, 3 de abril de 2016

Hollywood Depois da Meia-Noite



A pressão das suas mãos contra as minhas costas nuas, aquele arquejo: eu me sentia transportado para Hollywood.
Um convite à insensatez, ao desregramento, à demolição completa, a me ajoelhar perante os altares vacilantes do ego.
"Eu te vejo", era só o que eu podia ouvir do seu balbuciar em meu ouvido, que parecia eterno, mesmo durando o tempo de uma batida de coração.
Palmeiras silenciosas, céu sempre azul, avenidas abertas; suas unhas vermelhas quebrando-se contra a minha pele, lábios escarlates.
Eu me desfazia em todo aquele blues, era consumido pela chama de cada jazz que tocava em cada esquina mal iluminada por um neon prestes a se apagar.
Álcool, fumaça de cigarros, onde o ilícito sobejava e onde eu aspirava pelo ilegal. Você me dizia que deveria ser ilegal despedaçar assim o coração de uma mulher.
Cabelos louro-platinados a la Jean Harlow, Golden Age, golden tragedies. Eu costumava gostar disso.
Sirenes cortando a madrugada morta de LA, a Mulholland Drive tão sinuosa quanto as curvas dos seus quadris.
Minha Joan Crawford, minha Bette Davis, minha Lauren Bacall. Meu paraíso e minha sombra que se esgotava por entre as noites dissolutas e faiscantes.
Like my body? Want some money? Wanna play? Want a vi-per? Dentes à mostra, mostre-me mais. Mostre-me o seu sangue, essa torrente escarlate que manchou tantas banheiras aleatórias.
Dissolva-me nesse abraço eterno, que dura uma batida de coração. Deslumbre-me com todas as cores que a sua escuridão pode forjar.
Beba de mim e viva para sempre - as estrelas não envelhecem, ¿verdad?
Viveremos de devastação e luzes brilhantes enquanto você ainda puder me enxergar. Por um breve instante imemorial. Enquanto nós ainda formos bem-vindos em Hollywood.


quarta-feira, 9 de março de 2016

Rendição



3 da madrugada, hora morta. A hora morta.
Eu, sentado no quarto escuro; a gata silenciosa, sentada no parapeito da janela.
Fumaça de cigarros rodopiando pelo ar dormente, em minha mente um "não" ressoa:
Uma palavra de violência, um grito de guerra que despedaça todos os armistícios previamente planejados.
Pensar no sentimento que eu lhe tinha é pele derretendo sobre carne, é carne se rompendo sobre ossos, são ossos secos estalando sob pés descalços.
Notre grand amour est mort.

Um jogo perverso de se esconder, um homem que caminha pelos labirintos da casa - oculto.
Aparas de unhas, fios de cabelo pelo caminho. Eu me escondendo, não de você,
De mim mesmo. Gotas vermelhas, de vinho ou de sangue, que diferença? Ya me da igual... 
Só sabe de amores quem sabe o que é martírio, só sabe de amores quem entende a diferença entre vírgulas e ponto-e-vírgulas.
Pensar em você é um mundo em chamas. Pensar em você é como aquele som de cello, dramático, irresoluto: um lamento que corta o ar e, repentinamente, adormece...

Como os parágrafos deste poema pagão. Exaustos, reticentes, como que morrendo;
Ao se encurtarem, sangram e são podados e desmaiam... E sobram os "es".

(Suspiro, arquejo. 
Et voilà).
...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Blues Natural



Algo me despertou naquele sonho luminoso.
Deitado naquele barquinho, sob o Sol da Tailândia, chapéu sobre meu rosto,
Batidas e ecos de uma canção quente e centrífuga, que me puxava para dentro de si.
Me ergui e sentei, todo aquele vasto oceano azul ao meu redor,
Sem remos, sem preocupações, sem nada que me atraísse à terra;
Montanhas ao redor daquela praia secreta, daquele jardim secreto,
Daquelas palmeiras, que pareciam dedos esticados para tocar não sei que tipo de delícia celeste.

O céu era tão azul que até fazia meu peito doer.
Nada era escuro ou cinzento ali: tudo era radiante,
Tudo vibrava, nada era estático, nada era inerte. Sobre minha cabeça, voavam as gaivotas,
Sob o casco do barco, nadavam peixes grandes e pequenos:
Tinha um aquário particular debaixo de mim, sobre o qual eu boiava despreocupadamente.
Eu era mero homem natural ali: roupas simples, bermuda desfiada, regata branca amarrotada,
Pés descalços: um blues natural, porém sem melancolia. Espirituoso e frenético.

Debrucei-me sobre a borda do barquinho e mirei o oceano abaixo.
Ele se estendia até onde meus olhos podiam ir e, certamente, muito mais além,
Como massa escura e misteriosa. Ora, passava um peixinho gracioso por baixo de mim,
Ora um tubarão, maior do que a própria estrutura da embarcação, mas eu não tinha medo.
Não existia medo naquele blues onírico e natural, naquela batida constante.
Eu poderia me levantar e dançar, mover meu corpo - poético e lânguido -
Eu poderia atirar-me à água e ser um só movimento com as ondas, tão despretensiosas...

Em minha cabeça, tambores ressoavam uma melodia flamejante.
Fogo saía de cada nota, de cada emissão daquela percussão vivaz e quebrante.
E, ao mesmo tempo, em que estava sentado naquela barcarola, tal qual conto de Hoffmann,
Eu flutuava sobre aquela cena paradisíaca, para fora do tecido espaço-tempo,
Sobre as ondas gravitacionais, eu era matéria fluída, eu era onda, eu era raio, eu era luz.
Eu era estática de televisão, eu era chiado de rádio, eu era insensatez e imprudência.
A chama de uma vela que dançava ao sabor do vento, arriscando ser apagada.

Sentia que podia recomeçar indefinidamente, que podia dilatar-me e contrair-me.
Força da natureza, pronta para explodir para além dos limites das pontas dos meus dedos.
Naquela praia secreta, eu era o dia e eu era a noite. A costa não me atraía,
Eu era um com o mar e ele me chamava. O Sol já não ia alto, logo seria noite.
Minha pele já conhecia o toque cálido do dia, meus pulmões já conheciam a suavidade do ar,
Levantei-me e estiquei os braços, como se eles fossem capazes de dar a volta ao redor das montanhas
E voltar para mim. Olhei para baixo, para o mar que escurecia ainda mais e mergulhei.

Eu ainda seria o dia e a noite. O céu e o mar. Eu, elemento metafísico. Eu, elemento natural.
Eu, blues físico: músculos e matéria palpável. Eu, etéreo e final. Profusão de tons e semitons. Sempre um blues natural e todo o mais além...


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Memória Triste de Amores de Uma Noite



Quando os primeiros raios de Sol entram pelas frestas das persianas nesta manhã de inverno, me encontram desperto.
Encontram meus olhos e meus braços abertos, alguém que, nem por um minuto, dormiu.
O escuro que habita meus olhos miram o teto, catatônico, enregelado, cheio de misterioso palor,
O escuro que habita minhas mãos pende pelas bordas da cama, frouxo e vazio.
Ao canto do quarto, um rádio toca batidas tristes de trip-hop, baixinho, quase como um lamento mudo. Batidas essas, outrora, quentes, lânguidas, flamejantes. Hoje, apenas fantasmas do que poderiam ter sido e foram por uma brevidade de tempo.
Deitado nesta cama feita de lençóis desfeitos, eu olho para o guarda-roupas. Aquela velha caixa de madeira triste e carcomida guarda lembranças de quem eu fui.
Dentro dele, pedaços da minha alma, retalhos da minha resiliente juventude estão dependurados pelo pescoço, qual Judas dependurou-se naquela árvore tristonha.

Aqui deitado, solitário e passivo, eu me lembro de fantasmas; histórias assombrosas das madrugadas passadas.
Histórias de dedos entrelaçados, de palavras fáceis nos lábios, de arquejos e sobressaltos, de noites insones e brancas. Histórias do ardor das madrugadas.
Naquele tempo, tudo o que me importava era possuir sem ser possuído. Era reter, sem que, verdadeiramente, doasse algo. Era encantar, sem ser vítima do encantamento.
Por anos e anos, eu deixei um pedaço do meu espírito em leitos desalinhados. Por muitas horas e de muitas maneiras, eu festejei com as migalhas jogadas, sem verdadeiramente disso me dar conta.
Em cada lábio, uma promessa de eternidade buscada, ainda que uma eternidade medida, ainda que uma eternidade que coubesse nas palmas das minhas mãos.
Ainda que uma eternidade que me escorresse por entre os dedos.

Depois, apenas o esquecimento: a ignorância dos sentidos. Nenhum paraíso duradouro, nenhum lenitivo permanente, apenas memórias despedaçadas.
Tudo o que entreguei e foi-me entregue consumido pelas cinzas das horas.
Depois que os incêndios eram apagados, apenas formalidades. Apenas negação. Apenas desprezo. Por muitas horas, eu teria tentado espremer amor de mim mesmo, mas não havia força. Não havia chama, nem prelúdio de eternidade. Não havia mais fogo para queimar.
Havia frio, havia aquele líquido gélido que percorria as minhas veias e a ele eu me apeguei, como vida, como movimento que ainda havia cá dentro do meu corpo.
Havia febre, mas que não queimava; havia suor, mas que não me banhava. Apenas gelo, que derretia diante da iminente chegada do amanhecer.

Depois de tantos anos entregue, eis que minhas mãos permanecem vazias. Eis que eu me deparei com uma praia deserta e inóspita, habitada apenas pelos fantasmas que, quando criança, me sussurravam:
"A solidão é a sina final de todo homem, meu pequeno..."
Depois de tantos beijos, de tantos arquejos, de tantos desejos - vermelhos e pulsantes -, eis que, finalmente, eu não sou mais que gelo.
Uma borboleta negra e cinza, cujas cores se consumiram sob o dia que arde e urge e que não é capaz de enfeitar mais nenhum jardim.
Mera lembrança esmaecida em memórias torpes e ocupadas em se dar mais prazer. Mera sombra errante, presa neste quarto silencioso e melancólico.
Não sou Lázaro, não sairei mais desta cova viva. Não vejo hipótese de real amanhecer, além daquele Sol indiferente, que se levanta do oriente. Não sou herói e não sou esperado.
Sou a sombra do desejo que se apaga, sou a pálida impressão de dedos unidos e que se separam.

Sou o evanescente espírito do querer demais, sou o fruto do encantamento do amor ébrio, das noites faceiras e das alcovas ardentes.
Sou a devoção passageira e incapaz de resistir. Uma casa em chamas, cujo fogo começa a se tornar em cinzas e vestígios de destruição e luzes ofuscadas, ainda que queira continuar queimando indefinidamente.
Ninguém há que me contemple agora que não sou mais que fumaças de cigarros que se dissipam ao vento. Não sou mais que espectro byroniano, cheio de spleen, vinho e amargores,
Mais que saudade difusa e que nem consegue remendar-se a si mesma. Eufêmica. Redundante. Paradoxal.
Eu sou as garrafas entornadas pelo chão do quarto, eu sou as lágrimas vertidas deitado no chão da cozinha, eu sou um permanente estado de liquefação,
Onde me desfaço, sem novamente me reconstruir. Daí, para evaporação e para ar...
Eis o que me tornarei: vapor e matéria etérea. Celofane, translúcido e desnecessário.


O fantasma de um homem. O espírito vivo e sem notícias da morte. A sombra de tantos vocês que se tornaram um eu roto e despedaçado, afinal.