sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Retrato de Uma Queda.


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Não pense que não, eu vi exatamente.
Contemplei segundo a segundo a forma como você caiu.
Fui a testemunha mais íntima do modo como se operou a sua queda.
Vi suas pernas não serem fortes o suficiente para amparar o peso de seu corpo.
Vi o seu resvalar, o seu tropeçar,
O desesperado movimento dos seus braços para segurar o que já não tinha mais segurança neste mundo.
Vi o estrondoso silêncio e o abafado gemido produzidos pela vergonha de um momento de humanidade.
Senti em minha boca os fios de sangue que escorreram dos rasgos abertos em sua pele molhada.
O saibro de sangue, o amargor do ferro. Hemoglobina. Essências.
Permaneci impassível, imóvel, observei em sequência a chuva da rua lavar sua ferida e levar o seu sangue esgoto abaixo.
Não o ajudei e não o consolei. Não ajuntei seus livros espalhados
E não procurei secar seu maço de cigarros ensopados, inúteis agora.
Não evitei quando pisei seus óculos e senti um frêmito misto de agonia e gozo quando ouvi seus aros partirem-se sob meus pés confortavelmente calçados.
Não senti ódio e nem alegria e nem me rejubilei ou lamentei.
Impassivelmente silente e mortalmente imóvel.
Testemunhar: eis o significado do verbo que aqui não expressa ação, mas inatividade.
Nenhuma sombra de vida ou movimento de minha parte,
A vida relutantemente movimentando-se em você.
Antes de virar as costas ainda tive tempo de ver: o levantar-se, o ato de recompôr-se discretamente.
Você passou a mãos pelos cabelos desalinhados, procurou por seus óculos e soltou uma indivisível exclamação de lamento ao vê-los partidos no chão.
Limpou as roupas sujas, lambeu o sangue dos braços agora nús, pela licença que as mangas da camisa lhes concederam,
Empilhou os livros um a um e colocou-os sob o braço protetor e desprotegido de homem adulto.
Ignorou os cigarros imprestáveis e deu uma última olhada para a cena.
Suspirou: foi tudo o que eu pude ouvir, derradeira queixa.
Saiu, vagarosamente, direção oposta à minha e não olhou para trás.
Também eu apenas relanceei uma última vistoria, não sem um lampejo de sorriso nos lábios.
Vida engraçada! Não pude deixar de pensar sobre isto mais tarde.
Não pude deixar de compôr este ingênuo e soturno retrato,
O retrato de sua soturna e ingênua queda.

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Por Raphaël Crone.