domingo, 3 de agosto de 2014

Acordes na Noite



Fumava sentado no parapeito da janela,
Terceiro andar, ruas escuras, ao longe um trânsito sonolento.
Por entre as árvores mais a frente um lamento
Em forma de dedilhado violão choroso.
Uma melodia triste e desesperançosa, lúgubre como a fumaça do meu cigarro.
Mortiça, quase palpável, como que cantando saudades do lar.

Quem era o bardo não via. Por entre as árvores os acordes cresciam e diminuíam,
O que ouvi foi o grave da voz do cantor.
Eventualmente, ele parava e as cigarras tomavam para si a responsabilidade de encher de sons a minha noite,
Para, pouco depois, o lamento recomeçar.
Encostei-me ao gradil da janela escancarada, cigarro entre os dedos,
Fumaça fedorenta que me envolvia, qual o negror da noite ao meu redor.

Pouco a pouco passei a ouvir passos abafados pelo cantarolar
E a voz foi crescendo em intensidade, mais limpa, mais triste e mais profunda.
Em meu íntimo comparei tal canção às lágrimas de uma Virgem de mármore:
Secas e empoeiradas pelo passar dos entardeceres.
Fixei meu olhar onde o bosque terminava, cinzas caindo por entre meus dedos silentes,
Um violão veio ao meu encontro em forma de suspiro e eu, por minha vez, suspirei.

O homem que cantava finalmente mostrou-se à luz e eu percebi que era um velho andrajoso.
Sua forma esguia e desgrenhada materializou-se sob a luz pálida do poste logo fora dos contornos do bosque:
Barbas sujas e crescidas, um cantil pendurado rente à cintura, um embornal e sandálias surradas nos pés.
Tudo, inclusive sua canção, teriam me causado pena, se não fosse pelos seus olhos:
Fixos em mim, no parapeito do terceiro andar, faiscantes e misteriosos.

Naqueles olhos imemoriais pareci ter visto outras eras, outros aromas e outros deuses sepultados.
Por um instante vi a luz daqueles olhos cansados debruçarem raios sobre toda a noite escura e vazia.
Tudo não durou mais que alguns segundos; como um arrebatamento que termina percebi que o velho já estava descendo a rua, cantando aquela mesma canção grave e monótona.
Fitei suas costas por mais um momento, lancei os restos do cigarro da sacada e fechei a janela.
Deitei-me para adormecer, embalado pela imaterial voz de uma memória imortal.