terça-feira, 2 de novembro de 2010

Perdão

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[ Perdoamos na medida em que amamos. ] * [ François La Rochefoulcauld ]

[ Na falta de perdão, abre-te ao esquecimento. ] * [ Alfred de Musset ]


Mamãe me dizia que o perdoar é divino,
E, menino que era, nunca fui capaz disso bem entender.
Hoje eu sei: se perdoar não é divino,
Ao menos nos leva para mais perto da divindade;
Pequenos degraus para o nirvana,
O desapego do Samsara.
Divina excelência de deidade em mero e reles corpo de humanidade,
Humanidade que se reveste de glória e ascende por si só.

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Por Raphaël Crone

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Aqueles Nossos Dias Dançantes Se Foram

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Ouvi ontem aquela nossa música,
Aquela com a qual dançamos naquela noite, anos atrás.
Percebi que ela anda usando uma roupa envelhecida,
Despojada do eletrônico e do supersônico,
Despojada de ambição.
Os velhos acordes de piano arcaicos, a voz morna e sussurrante,
O epitáfio de uma existência breve.
Lembrei de nós dois. Lembrei de como nossos dias dançantes eram jovens
E cheios de excitação,
Dos sons das vozes, das risadas pueris,
Dos frêmitos de desejo e do amor.
Os cigarros compartilhados, a promessa de eternidade não pronunciada,
A vontade de ser e de continuarmos sendo um só
(Mesmo sabendo que um só é sempre igual a dois)...

Lembrei do desejo incontido e valente,
De como desafiamos seu pai,
Das escapadas pela janela durante as madrugadas frias,
Das esperas no portão.
Dos canteiros de flores espoliados para enfeitar o seu cabelo,
Das brincadeiras secretas e das juras pulsantes,
Do desejo de que fosse infinito não enquanto durasse,
Mas que fosse infinito durando para sempre...
Lembrei de como você era capaz de me levantar,
De como me conduzia bem em meio à minha noite escura.
De como me atropelava como um foguete
E de como me reconstituía depois em perfeito estado de graça e fascinação.
Me lembrei de nós...
Das nossas diferenças e aspirações
E da necessidade de sermos diferentes juntos, em igualdade.
Lembrei da nossa melancolia ao anoitecer.

Hoje não há vontade, não há aspirações.
Aquela velha casa onde dançamos juntos nossa velha música já não está mais lá,
Os canteiros de flores foram definitivamente despedaçados,
E as flores não foram enfeitar os cabelos de mais ninguém.
A nossa unidade bipartiu-se, dessa vez sem sombra de nossas mãos entrelaçadas
E o que foi até então tornou-se como se nunca tivesse sido.
Se ao menos você ainda soubesse como me levantar,
Se ainda me guiasse por entre essas matas densas que existem cá dentro...
Se houvesse ainda a fumaça ensolarada dos nossos cigarros
E a voz doce de nossas inquietações!
Mas não...
Nós nos perdemos, em meio ao nosso mundo infectado,
Devastado pela fome, pela guerra, pelo frio.
Nós negligenciamos um ao outro e aquela nossa velha música nunca foi bem conhecida pela juventude supersônica de agora.
Nós nos perdemos em meio ao vão.

Perdemos a guerra, bandeiras brancas e armistícios,
Quando uma vez tão bravamente batalhamos até mesmo contra nós mesmos para vencer.
Não há mais mãos entrelaçadas, nem lábios unidos,
Não há sombra de possibilidade e não há resquício de vontade,
Não há continuação.
Não há lágrimas, não há chances, não há mais aquela nossa levada francesa,
Melancólicos arrebóis entre lençóis desfeitos.
E nesse mundo onde tudo recomeça, eu não consegui recomeçar ainda,
Não sei bem por onde seguir.
Queria poder dançar com você ainda mais uma vez,
Mas não há nem mesmo mais aquele chão que nos sustinha, a nossa sanidade.
Há palavras vazias e que não são ouvidas,
Há murmúrios e uma profusão silenciosa de sentimentos
Que não são capazes de nos trazer de volta,
Que não mais falam, não mais ouvem, não mais veem.
Queria dançar com você mais uma vez, mas me lembrei agora, querida,
Não há sombra de possibilidade entre você e eu:
Aqueles nossos dias dançantes já se desvaneceram, como a névoa.
Aqueles nossos dias dançantes não mais existem,
E nós nos esquecemos de ensiná-los a retornar...

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Por Raphaël Crone

domingo, 31 de outubro de 2010

Samhain

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[ Eu posso ver as luzes na distância, tremeluzindo sob o manto escuro da noite... Velas e lanternas estão dançando, dançando uma valsa na Noite de Todas as Almas... ] * [ Loreena McKennitt ]

[ Quando a Lua, numa nuvem, lançou a Noite, pendurada sobre o topo das árvores,/ Você me cantou sobre um passado distante, que fez meu coração bater forte e rápido:/ Agora eu sei que estou em casa, finalmente./ Você me ofereceu asas de águia, com as quais eu poderia planar até o Sol, e cantar/ E se eu escutasse o lamento da coruja, eu poderia voar para dentro da floresta/ E dentro dessa escuridão te encontrar.../ Então, o nosso amor não é coisa simples, nem nossas sólidas verdades/Mas como a Lua puxa as marés, nossos corações se tocam em colisão:/ Eu serei um sopro da Lua ao seu lado... ] * [ Loreena McKennitt ]

Amanhece chovendo em Samhain, o orvalho dos que partiram para a terra além do rio,
As preces que caem em gotas do céu sobre as cidades que dormem.
Noite das bruxas, onde o véu entre os mundos torna-se tênue,
O Samhain dos antigos celtas retorna à vida,
A Roda girando, o prenúncio do Inverno,
A Mãe que está descendo ao submundo em busca de seu consorte.
Tempo das lanternas e das preces às almas,
"Permaneça em paz, meu bom amigo!
Aí, onde eu não vejo, mas de onde sou visto! [...]".
A chama entre as brumas, o lago de Avalon,
O retorno da barca de Aqueronte.
Hoje é Halloween, conforme os versos da canção antiga,
Dia das criancinhas se esconderem por sob as capas,
Dia da Lâmia passar sua visita noturna,
Dia dos demônios meridionais retornarem à sua noite original...
"Mantenham as lanternas acesas, para que o mal passe reto!
Mantenham as abóboras sorrindo..."
Hoje é Halloween, o triunfo de Mike Mayers,
Carnificinas cinematográficas,
Danças de roda sob a capa da noite, nos bosques adormecidos.
Into the woods, more and more...
Covens em audiência, invocações e encantos,
A época de resgatar o deus e trazer dele seu filho a ser partejado em Yule...
Hoje é Halloween, o urbano e inventado,
E o lendário e espiritual.
Samhain, que do outro lado do véu emane benção e sabedoria!
Poder, Mãe!
Que emane justiça e claridade,
Discernimento e força
Para seguirmos girando a Roda, que sempre foi e nunca vai deixar de ser,
Para que mantenhamos a luz em convergência,
Crescimento e aprendizado, ascenção perene e evolução.

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Por Raphaël Crone

Ebulições

e vc-
Eu gosto do que sujo, do que é áspero, mordaz,
Do que morde e envenena.
Gosto do que pulsa, do que bate, atroz,
Do que martela em ondas de insuportável anunciação.
Gosto do que queima, do que fere,
Do que arde e do que faísca.
Eu gosto dos que ardem.
Eu gosto do inverno, dos flocos setentrionais,
Pálidos e gélidos
E gosto do verão, trópicos em chamas,
Cidades vermelhas, terras vermelhas,
Sóis fumegantes e incandescentes.
Eu gosto do que é inóspito, do que desafia a existência
E ainda assim existe,
Do que é selvagem, selvático, primitivo e carnal,
Mas não gosto do insípido, do incolor, do que não se vê, não se cheira, não se sente...
Eu gosto do sentimento, feelings entorpecidos e inebriados,
Aguçados com o calor do perigo e da espreita.
Eu gosto de adrenalina, sistema simpático, luta e fuga,
Eu gosto dos cheiros fortes, dos sabores inusitados,
Benzeno, metano, clorofórmio...
Eu gosto do que desafia a existência, mas que ainda assim é ultrapassado por ela,
Eu gosto da arte em gestos,
Da corrida, do embate.
Gosto das noites nas alcovas e nos becos,
Das palavras sob custódia e das deliberações silenciosamente reveladoras.
Roupas que caem, peles que se abrem...
Eu gosto do rush do tempo, a corrida da luz e do som,
Eu gosto dos gozos, vigílias cevadas em perdição...
Dos que queimam, dos que se debatem,
Dos que se derretem, dos que se refazem, dos que ardem...
Fogos de artifício, ebulições, o big bang existencial.

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Por Raphaël Crone

Noites Brancas

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[ ...Em alguns dias eu sou uma super vadia, cheia dos meus truques, mas isso não dura para sempre. Em outros, eu sou uma supergirl, saindo pra salvar o mundo, e isso continua melhorando... ] * [ Christina Aguilera ]

[ ...Qual é o seu nome, cara? ...Pode pegar as minhas coisas? ...Acho que preciso de uma aspirina... O que aconteceu noite passada? Por que não me lembro? ...O que acontece? ... ] * [ Britney Spears ]

[ ...Eu não sou eu esta noite, não sou a mesma garota, não sou a mesma garota... ] * [ Christina Aguilera ]


Cultura pop a serviço da arte
Interagindo e tornando-se arte,
Lasciva, metamórficamente obscena,
Transformações de personalidades com o cair da noite,
Madrugadas sedentas, noites em branco.
Mon dieu, nuit blanche...
Como me reconheço quando a manhã chega?
Como posso me lembrar do que passado foi noite adentro?
Noite adentro, afora, adentro, afora [...]
Promiscuidade e efervescência, poesia,
Frêmitos, vigílias em perdição.
Noites de Solfieri, imaginações de Álvares de Azevedo.
Noites de luzes em século infante,
Neons multicoloridos.
Noites de fúria e som, gemidos, sibilos, penetrações.
Perversões, a dois, a três, a quatro.
De quatro.
Como me lembraria do que foi noite adentro?
Rijos braços, contraídos músculos,
Movimentos rítmicos, arrítmicos, em síncopes violentas,
De uma a outra mão.
Mãos no quadril, de quatro no chão.
Palavras ininteligíveis.
Não sou eu esta noite, tudo, apenas um borrão:
O que acontece?
Quando anoitece, quando amanhece... [?]
Cultura pop, vida pop,
Vida de gozo e poesia.
Erótica. Poética. Sentimentalmente egocêntrica,
Preocupada em transbordar-se em rios ebúrneos,
Viscosos... Indecentemente deleitosos...
O que se passa... [?]
Tudo é um borrão... Eu novamente pela manhã...
Preparando-me em planejamentos,
Novamente não mais eu na noite que vai chegar...

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Por Raphaël Crone

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Recomeço: Volta

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E volto eu,
Arrastando-me em direção ao êxtase,
Ao frêmito das madonas, Santas Teresas, Magdalenas,
A carne trêmula, como a de Almodóvar;
Tal é a sensação, diante de mim, uma vez mais.
Suspenso no ar por fios que não se veem:
Uns movimentam punho, outros, pena,
Um mais tênue imita o pulso de um coração,
Outros, etéreos, são ventilação artificial, pulmões em expansão e remissão:
Eu de volta à essência, trêmulo, pueril, pródigo,
Após a abstinência, de volta ao básico,
Ao meu básico, ao meu êxtase,
À minha escrita anônima.
Um novo acolhimento,
Neologismos e sentimentalidades [in] coerentes;
Mais uma vez ouvirei eu mesmo falar do que há cá dentro,
Exteriorizando-me.
Eviscerando-me em sangue e letras,
Dogmas implícitos, opiniões, explicitando-me,
Tripas de conotação filosófica.
O eu da minha juventude
Pródiga, em êxtase, em volta de,
De volta a, por necessidade, por prazer, por obrigação cármica, quiçá.
Reinicio por vontade própria meu processo,
Roda do Samsara, das aparências, das vaidades abandonadas.
Violenta evisceração.

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Por Raphaël Crone.