terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Memória Triste de Amores de Uma Noite



Quando os primeiros raios de Sol entram pelas frestas das persianas nesta manhã de inverno, me encontram desperto.
Encontram meus olhos e meus braços abertos, alguém que, nem por um minuto, dormiu.
O escuro que habita meus olhos miram o teto, catatônico, enregelado, cheio de misterioso palor,
O escuro que habita minhas mãos pende pelas bordas da cama, frouxo e vazio.
Ao canto do quarto, um rádio toca batidas tristes de trip-hop, baixinho, quase como um lamento mudo. Batidas essas, outrora, quentes, lânguidas, flamejantes. Hoje, apenas fantasmas do que poderiam ter sido e foram por uma brevidade de tempo.
Deitado nesta cama feita de lençóis desfeitos, eu olho para o guarda-roupas. Aquela velha caixa de madeira triste e carcomida guarda lembranças de quem eu fui.
Dentro dele, pedaços da minha alma, retalhos da minha resiliente juventude estão dependurados pelo pescoço, qual Judas dependurou-se naquela árvore tristonha.

Aqui deitado, solitário e passivo, eu me lembro de fantasmas; histórias assombrosas das madrugadas passadas.
Histórias de dedos entrelaçados, de palavras fáceis nos lábios, de arquejos e sobressaltos, de noites insones e brancas. Histórias do ardor das madrugadas.
Naquele tempo, tudo o que me importava era possuir sem ser possuído. Era reter, sem que, verdadeiramente, doasse algo. Era encantar, sem ser vítima do encantamento.
Por anos e anos, eu deixei um pedaço do meu espírito em leitos desalinhados. Por muitas horas e de muitas maneiras, eu festejei com as migalhas jogadas, sem verdadeiramente disso me dar conta.
Em cada lábio, uma promessa de eternidade buscada, ainda que uma eternidade medida, ainda que uma eternidade que coubesse nas palmas das minhas mãos.
Ainda que uma eternidade que me escorresse por entre os dedos.

Depois, apenas o esquecimento: a ignorância dos sentidos. Nenhum paraíso duradouro, nenhum lenitivo permanente, apenas memórias despedaçadas.
Tudo o que entreguei e foi-me entregue consumido pelas cinzas das horas.
Depois que os incêndios eram apagados, apenas formalidades. Apenas negação. Apenas desprezo. Por muitas horas, eu teria tentado espremer amor de mim mesmo, mas não havia força. Não havia chama, nem prelúdio de eternidade. Não havia mais fogo para queimar.
Havia frio, havia aquele líquido gélido que percorria as minhas veias e a ele eu me apeguei, como vida, como movimento que ainda havia cá dentro do meu corpo.
Havia febre, mas que não queimava; havia suor, mas que não me banhava. Apenas gelo, que derretia diante da iminente chegada do amanhecer.

Depois de tantos anos entregue, eis que minhas mãos permanecem vazias. Eis que eu me deparei com uma praia deserta e inóspita, habitada apenas pelos fantasmas que, quando criança, me sussurravam:
"A solidão é a sina final de todo homem, meu pequeno..."
Depois de tantos beijos, de tantos arquejos, de tantos desejos - vermelhos e pulsantes -, eis que, finalmente, eu não sou mais que gelo.
Uma borboleta negra e cinza, cujas cores se consumiram sob o dia que arde e urge e que não é capaz de enfeitar mais nenhum jardim.
Mera lembrança esmaecida em memórias torpes e ocupadas em se dar mais prazer. Mera sombra errante, presa neste quarto silencioso e melancólico.
Não sou Lázaro, não sairei mais desta cova viva. Não vejo hipótese de real amanhecer, além daquele Sol indiferente, que se levanta do oriente. Não sou herói e não sou esperado.
Sou a sombra do desejo que se apaga, sou a pálida impressão de dedos unidos e que se separam.

Sou o evanescente espírito do querer demais, sou o fruto do encantamento do amor ébrio, das noites faceiras e das alcovas ardentes.
Sou a devoção passageira e incapaz de resistir. Uma casa em chamas, cujo fogo começa a se tornar em cinzas e vestígios de destruição e luzes ofuscadas, ainda que queira continuar queimando indefinidamente.
Ninguém há que me contemple agora que não sou mais que fumaças de cigarros que se dissipam ao vento. Não sou mais que espectro byroniano, cheio de spleen, vinho e amargores,
Mais que saudade difusa e que nem consegue remendar-se a si mesma. Eufêmica. Redundante. Paradoxal.
Eu sou as garrafas entornadas pelo chão do quarto, eu sou as lágrimas vertidas deitado no chão da cozinha, eu sou um permanente estado de liquefação,
Onde me desfaço, sem novamente me reconstruir. Daí, para evaporação e para ar...
Eis o que me tornarei: vapor e matéria etérea. Celofane, translúcido e desnecessário.


O fantasma de um homem. O espírito vivo e sem notícias da morte. A sombra de tantos vocês que se tornaram um eu roto e despedaçado, afinal.