sexta-feira, 5 de abril de 2013

Subterrâneos



Minhas palavras para você florescem dos subterrâneos da minha existência:
Trazem aroma requintado, mesmo vindo de cá dentro, do meu Hades emocional, onde repousa Eurídice prisioneira.
Minhas palavras para você são brandas e ensolaradas, assim como Perséfone o era quando ainda era simplesmente Coré, antes de engolir um simples caroço de romã.
Carregam, como significado, minhas vísceras, minhas sinapses,
Meus neurônios entorpecidos pela fumaça da sua presença.
Você é erva hidropônica para o meu juízo e quando se aproxima eu me intoxico nesse delicioso êxtase de sensações.
Quando você me encontra com as mãos estendidas, em atitude de doação, perceba que tudo o que eu lanço aos seus pés vem daqui de dentro, do lugar mais recôndito que a minha consciência tem capacidade de compreender.
O que eu te dou é aquilo que guardo na retina, atrás dos olhos, entre os pulmões e entre as pernas, que tremem assim quando te vejo.
Tudo o que insuflo em você quando nossos lábios se tocam é emoção e vida;
É alimento do meu espírito que contigo divido, qual pão e vinho,
Azeite e candeia, peixe e água,
Qual prenda minha, singela prova irrefutável de todo o meu bem-querer...

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Por Raphaël Crone

"Para o Zé", de Adélia Prado



Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia;
eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo. 
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. 
Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. 
Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

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Poema de Adélia Prado
Citado por Raphaël Crone

Lenha



Quando penso em você sinto meu coração se aquecer.
Por toda uma vida eu fui lenha fria, jogada no meio do mato, esquecida,
E, então num minuto, do nada, você me apanhou e de mim fez fogo restaurador.
Eu estava encharcado pelas chuvas do verão, rejeitado por aí
E você, ainda assim, me tomou em suas mãos e de mim fez calor e abrigo.
Em minhas chamas você aquece o seu corpo e eu lhe envolvo,
Faço pesadas gotas caírem de sua pele, pinto seu rosto de fuligem e carvão,
Marco você como aquele que acende o meu ego adormecido com o toque de suas mãos,
Com o sussurro de sua voz e com o veludo do seu olhar
E eu lhe aqueço com o calor dos meus braços, com a constância dos meus abraços
E o ardor do meu coração, sempre em chamas por você.

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Por Raphaël Crone

Vaidade



Você é a minha vaidade, a fogueira onde, deliberadamente, me atiro e me consumo.
É por você que penteio os meus cabelos desalinhados pela manhã,
É por você que escolho a minha roupa mais bonita
E é por você que engraxo os meus sapatos.
Você é o meu luxo, o coração a quem tento impressionar com palavras e sorrisos,
Com elogios verdadeiros e momentos de abobalhada contemplação.
É você, meu bem, por quem meus olhos tímidos brilham,
Por você eles se destacam meio à multidão de olhares apagados e rasos.
Por você eu me perfumo e cruzo a cidade debaixo de chuva,
Chegando até você inodoro como água e tiritando de frio como se gelo estivesse dentro dos bolsos da minha calça.
Você é o meu encanto, o meu encantamento silencioso, que me traz um vislumbre de alegria quando aparece, de repente.
É a chama que me aquece no frio da madrugada e o reflexo do que há de melhor em mim, quando me olho no espelho:
Você é a doçura do meu sorriso, o arquejar do meu peito e a batida que foi pulada por meu coração maroto, que mesmo com minha falta de ritmo se envaidece por lhe pertencer, feliz.

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Por Raphaël Crone

A Bacante



Quando você deita a brancura de sua pele sobre a minha, você não é mais mulher: é bacante.
Seus cabelos desgrenhados revoltam-se ao desejo do vento,
Suas garras vermelhas se afundam em minha carne suplicante,
Seus lábios intumescidos consomem o ar que meus pulmões, com muito custo, tentam reter.
O azul dos seus olhos me afogam onde não encontro praias ao redor
E o castanho dos meus lhe soterram, lhe enterram bem lá dentro de minha alma de poeta desnudo.
Quando minha língua toca a sua, sinto o saibro de sangue:
Ferro, hemoglobina, rubra torrente de vertigem, que se esvai das minhas veias rotas
E se misturam à sua saliva doce, mel que me embriaga como a cana que se destila.
Ouço os lençóis se esgarçarem sob nossa volúpia,
O arrebatamento das mãos, braços e abraços se esparramando como nanquim em papel alvo:
Marcas indeléveis que a memória não mistifica.
Rompemos a alvorada entre arquejos desfeitos, oníricas passagens que a manhã não carrega,
Momentos de lassidão que a libertinagem não traduz perfeitamente,
Lascívia inscrita em versos sobre nossa pele que profusamente se desfaz em gotas,
Porque quando você se deita sobre mim não é mais mulher: é bacante e eu sou seu Baco, embriagado com o vinho da sua paixão.

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Por Raphaël Crone


Bailero



Dançamos juntos a velha dança dos anos:
Minha mão em sua cintura, seus braços enlaçando o meu pescoço.
Sinto o aroma que se desprende dos seus cabelos longos, luminosos como a aurora cortando a noite moribunda.
Vejo sua cabecinha recostada em meu peito, seus olhos em meu paletó lúgubre,
Seu vestido rodado volita ao sabor do vento, rodopios contidos e suspiros sufocados.
Meu cigarro queima vagarosamente no canto da minha boca e o fumo cinzento que se levanta baila também ao nosso redor.
Observo a nossa célere juventude cruzar as décadas
E num futuro não-tão distante você ainda recostada junto a mim, em um amparo solidário,
Quando minhas pernas vacilarem e quando minhas mãos tremerem inábeis.
Penso no bailado dos anos, no "bailero" inexorável que nos conduz sempre adiante,
Sem chance de voltar ou refazer o que foi feito com displicência.
Penso no bailar dos anos e sorrio: não envelheço enquanto espero pelo seu amor
E os meus anos se regalam recostados aos seus, pacata valsa do nosso entardecer.

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Por Raphaël Crone

Jayne Mansfield



Os pedais daquele velho carro vermelho rugem sob os meus pés convulsos:
As árvores passam por mim e eu passo por elas em disparada,
Singrando as alamedas que levam à sua casa como se fossem oceanos de misteriosa amplidão.
O câmbio, obediente e preciso, lamenta timidamente sob minha mão:
Primeira, segunda, terceira... Jamais marcha ré.
O vento que entra pelas janelas serpenteia por meus cabelos,
Espalha papéis jogados no banco traseiro, assobia lascivamente teu nome para mim.
A pista molhada pela chuva me impulsiona em movimento de apoio:
Por um momento sinto até mesmo a direção resvalar, aquaplanagens.
Nada, porém, me faz perder o foco de alcançar você nesta noite.
Horas a fio nesta autoestrada, cada segundo que se passa um segundo mais próximo de chegar.
Me dirijo a você afoito, sem medo do tráfego e nem da escuridão:
Faróis atentos, olhos vidrados.
Me sinto como Jayne Mansfield, mas com um final feliz:
Um final nos seus braços, nos derradeiros minutos da madrugada que morre, deitado entre as estrelas dos seus olhos azuis...

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Por Raphaël Crone

Um Dever Amaríssimo



[ Eu amava Capitu! Capitu amava-me! Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente, também, por ser a primeira... ] * [ Machado de Assis ]



Aquela carta que me mandaste ainda encontra-se sobre a escrivaninha:
O selo de um lugar que eu nunca conheci, o perfume com que banhaste as laudas ainda intocado.
Vejo os teus olhos no escuro daquela missiva e no envelope amarrotado posso delinear as linhas que sulcam teu rosto depois dos anos que se foram.
Não me dei ao trabalho de lê-la toda: vulgaridades;
Não me dei ao trabalho de respondê-la: "que vá ao diabo!";
Não me dei ao trabalho de desprezá-la: meu covarde apego à lembrança de tua aparição.
Como Bentinho procurou um dia, desesperadamente, os "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" de Capitu.
Eu me recordei dos teus olhos de ressaca: baixos, de pálpebras indolentes,
Num verde de profundidade sem alcance e de cílios como molduras reverentes.
Doeu-me lembrar daqueles teus olhos - um momento brevíssimo.
Na brevidade do momento, ódio sorrateiro perfurou-me - uma reação naturalíssima.
Em meus ouvidos soaram fantasmagoricamente as notas de teu violino - um frustração dulcíssima
E a minha mão, que se apoiava na cadeira segurando meu corpo curvado, mostrou-me que ainda hoje cabia a mim amar-te à distância - um dever amaríssimo,
Tal qual dissera José Dias.
A urgência de pagar minhas contas vencidas: títulos de devoção desmesurada a ti, aos teus encantos sem raízes e aos teus olhos de enigmática fascinação.

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Por Raphaël Crone

Paixão



Eu quero que você me adore, que me deseje com frêmitos de colérica necessidade;
Quero que precise de mim assim como precisa do ar em seus pulmões. Que me devore, com sangue e entranhas, que me entranhe.
Quero que se lembre de mim quando deita sua cabeça no travesseiro e que compreenda que sem mim você é mera fazenda incompleta, não vestido.
Eu quero que você me enrole, me fume, me inale, me injete:
Quero penetrar por seus alvéolos, quero adentrar suas artérias,
Rumo certeiro ao seu coração: átrios, ventrículos, hematoses e sentimentalidades fisiológicas.
Eu quero ser a sua poesia, quero ser a sua direção quando dirige
E quero ser os impropérios que você cospe nos momentos de irritação. Quero, mesmo, ser sua exasperação.
Quero ser o retrato impressionista do seu fim de tarde, as flores no jardim opacas e silenciosas.
E quero ser a calmaria de seu amanhecer de domingo.
Quero que você deseje o meu regaço para ali repousar a sua cabeça, quero que precise dos meus braços para completar os seus abraços.
Eu quero ser a sua tristeza de verão, quando o mundo flutua, cálido e entorpecido, pelos meandros soturnos das existências passionais.
Quero ser a sua prece, o seu hino nacional, o seu rosário,
Quero que você enxergue o seu paraíso em meus olhos e sinta o meu perfume no ar, aonde você for.
Quero que o vento lhe leve o meu beijo em forma de pensamento
E quero assim ser beijado por você enquanto fôlego houver em meu peito, que é teu.

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Por Raphaël Crone

Laços de Sangue



Dizem que os laços de sangue jamais se rompem verdadeiramente;
Eles se esgarçam, fibras se rompem, tornam-se sujos e encardidos com o tempo, às vezes,
Mas o cerne jamais se arrebenta.
Hoje eu percebi que, de fato, laços de sangue resistem aos anos.
Resistem às intempéries, ao acinte, resistem à falta de diálogo e à compreensão equivocada.
Por muitos anos nós nos encontramos e nos desencontramos,
Aqui, acolá, palavras de desaprovação,
Impressões transformadas em palavras e palavras ditas sem sutilezas graciosas.
Nesta manhã ensolarada, eu, aos 30, você, aos 50, travamos uma espécie de armistício sentimental.
Não houveram desculpas e nem pretensão delas,
Mas tudo foi como quando eu tinha 5 anos e você me segurava no colo,
Como quando me levava para o trabalho para brincar com aquela máquina de escrever velha
E quando passeava comigo na garupa da bicicleta.
As veias rotas por onde derramamos nosso sangue por tanto tempo começaram a se fechar,
Nossas gotas de sangue se transformando em rios de torrentes profundas,
Onde poderemos, eu oro, afogar nossas diferenças, enfim...

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Por Raphaël Crone