sexta-feira, 5 de abril de 2013

Um Dever Amaríssimo



[ Eu amava Capitu! Capitu amava-me! Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente, também, por ser a primeira... ] * [ Machado de Assis ]



Aquela carta que me mandaste ainda encontra-se sobre a escrivaninha:
O selo de um lugar que eu nunca conheci, o perfume com que banhaste as laudas ainda intocado.
Vejo os teus olhos no escuro daquela missiva e no envelope amarrotado posso delinear as linhas que sulcam teu rosto depois dos anos que se foram.
Não me dei ao trabalho de lê-la toda: vulgaridades;
Não me dei ao trabalho de respondê-la: "que vá ao diabo!";
Não me dei ao trabalho de desprezá-la: meu covarde apego à lembrança de tua aparição.
Como Bentinho procurou um dia, desesperadamente, os "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" de Capitu.
Eu me recordei dos teus olhos de ressaca: baixos, de pálpebras indolentes,
Num verde de profundidade sem alcance e de cílios como molduras reverentes.
Doeu-me lembrar daqueles teus olhos - um momento brevíssimo.
Na brevidade do momento, ódio sorrateiro perfurou-me - uma reação naturalíssima.
Em meus ouvidos soaram fantasmagoricamente as notas de teu violino - um frustração dulcíssima
E a minha mão, que se apoiava na cadeira segurando meu corpo curvado, mostrou-me que ainda hoje cabia a mim amar-te à distância - um dever amaríssimo,
Tal qual dissera José Dias.
A urgência de pagar minhas contas vencidas: títulos de devoção desmesurada a ti, aos teus encantos sem raízes e aos teus olhos de enigmática fascinação.

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Por Raphaël Crone

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