domingo, 30 de março de 2014

Paixão



Estendo minhas mãos para te dar o vento que entra pelas minhas narinas,
Recolho-o, qual relíquia, e aprisiono-o entre meus dedos,
Pronto para depositá-lo em tuas mãos, doravante proprietária da minha fulgaz existência.

Meto a mão cá dentro do meu peito roto e de lá retiro:
Massa rubra e disforme, cujo sangue me escorre em filetes por entre a alvura das mangas:
A luz e a escuridão que carrego entrego em tuas mãos também: um coração palpitante.

Abro-me de cima abaixo e assim me eviscero,
Faço-me livro aberto, assim sendo teu de dentro para fora, para que cá dentro habites;
Para que comigo conheças o significado daquela palavra lendária e obscura: eis-la, a paixão!



Em Frente ao Espelho



Eu me derramo por entre as minhas frestas:
Quando contemplo o velho espelho de cobre, me derreto desde o meu interior.
Desfaço-me em fios de cabelos castanhos, em longos dedos incandescentes,
Dedilho-me, qual bandolim ao som da noite: ruídos lânguidos do efervescer.

Sou pele liquefeita, sob baço palor da madrugada,
Sou qual o âmbar luzidio que se derrete e cristaliza,
Quando me contemplo diante do espelho das fantasias ardentes:
Sobre rendas me desvaneço e me aninho, qual saudade acariciada.

Desfaço-me em vaidades, diante da minha figura no espelho,
Ora me incho, ora me derreto, torno-me em líquido perolado
E me recolho, para assim contemplar-me por toda a noite:
A capital e insolente vaidade que a juventude ensinou-me a cortejar...


Medusa



Escrevo no escuro, com o luar por pálida lamparina,
Infiltrando-se por entre as cortinas semicerradas,
Um fantasma que passeia pelo céu.

O sebo das velas já se derreteu por sobre os castiçais
E o ruído melancólico da velha radiola chia e geme em um canto, ressentido.
Escrevo sob o véu da noite, tentando me desfazer da memória de você:
Medusa, que um dia transformou meu coração, ora palpitante, em pedra morta.

Donzela dos lábios rubros e das formas esguias,
Dos longos cabelos loiros e dos olhos lascivos;
Donzela a quem dediquei até o último acorde da minha guitarra.

Pérfida mulher amarga, que me deixou quando alta a noite ressonava.
Medusa, mulher de fábulas e lampejos.
Medusa - e nada mais.