segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Piano.

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[ Je ne rêve plus,/ Je ne fume plus,/ Je n'ai même plus d'histoire./ Je suis sale sans toi,/ Je suis laide sans toi,/ Comme une orpheline dans un dortoir./ Je n'ai plus envie de vivre ma vie,/ Ma vie cesse quand tu pars,/ Je n'ai plus de vie et même mon lit,/ Se transforme en quai de gare,/ Quand tu t'en vas./ Je suis malade,/ Complètement malade,/ Comme quand ma mère sortait le soir,/ Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir,/ Je suis malade,/ Parfaitement malade,/ T'arrives on ne sait jamais quand,/ Tu repars on ne sait jamais où,/ Et ça va faire bientôt deux ans,/ Que tu t'en fous. ] * [ Serge Lama ]


Observava o mundo lá fora pela janela do meu apartamento,
Fim de tarde.
As sombras da noite passavam a envolver tudo o que encontravam, o animado e o inanimado,
Como um manto de donzela que ocultava as insinuantes formas do dia que usado foi,
E que findava-se indolente.
Nenhuma luz se achava em nenhum recinto cá dentro,
A não ser três velas mortiças que queimavam em um candeeiro sobre a cauda do piano mudo no canto da sala.
Uma luz baça, uma melancolia vívida. Coisas do crepúsculo.
Ouvia a água deslizar pelas torneiras, enchendo a banheira há alguns metros dali.
Sentia um cheiro doce de algum perfume que eu não usava,
Quem sabe o que vinha das rosas do jardim de inverno.
Quem sabe, o cheiro da noite fria que, trotando, aproximava-se do mundo cá embaixo.
[ ... ]
Observei-me por um minuto na vidraça da janela:
Jovem alto e magro, cabelos longos despenteados, um rosto onde se lia outrora um misto de luxúria e juventude exuberante
E onde agora se lia apenas uma distância substancialmente material. Corpórea.
Uma saudade noturna, que Frédérich Chopin outrora tentou transformar em canção.
Observei minha pele alva e meus músculos firmes,
Toquei-me e senti frio. Um movimento decidido contraiu meu abdôme
E um calafrio transpassou minha espinha rija.



[ Je suis malade, complètement malade,
Comme quand ma mère sortait le soir

Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir. ]



Embore goze de perfeita saúde do corpo, estou doente cá dentro.
Je suis malade, complètement malade.
Este vazio aberto pela distância entre você e eu é como uma perfuração de adaga,
Um cimitarra persa que abre minhas entranhas românticas: agonie, agonie.



[ Eu estou doente, completamente doente,
Como quando a minha mãe saía à noite

E me deixava sozinho com o meu desespero . ]



O contraste de minhas calças escuras com o baço de meu corpo
E os fios desalinhados de cabelo caindo sobre meus olhos,
Criavam como que um belo fantasma de Álvares de Azevedo:
Noites na taverna, Macário.
Deixei os cortinados e vidraças,
Sentei-me ao piano mudo. Falemos, pois.
O som triste da canção alçou vôo dos meus dedos,
Encheu a sala, ultrapassou os véus das cortinas,
Adentrou os cômodos silentes,
Misturou-se à agua tépida que rolava das torneiras no banheiro regelado.
Quis tornar-me em canção, tentando alcançá-lo onde estivesse:
Fiz-me harpejo, apogiatura, fiz-me movimento de dedos coordenadamente desesperado.
Escalas ascendentes, descendentes. Diatônicas.
Ora abafado pelos pedais, ora prolongado. Estiquei-me e reduzi-me.
Piano, pianissimo. Forte, molto forte.
Mon rendez-vous, chéri.
Procurei tornar-me Rapsódia de Liszt, Movimento triunfante de Brahms,
Fuga de Bach.
Tornei-me Minueto e dos tristes. Faltou-me força para continuar.
A luz mortiça mal iluminava meus olhos e por um instante meus dedos calaram-se.
Negaram-se a prosseguir, inútil que era.
Continuei sentado na banqueta dura, desconsolado como criança de castigo.
O pensamento no nada e o desejo, que sabia muito bem por onde andava.
Andrajos de mim. Trapos exuberantemente sentimentais.
Levantei-me. Tirei as calças, joguei-as por sobre a poltrona e dirigi-me ao banheiro.
Entrei na água morna e mergulhei em mim mesmo.
Adentrei mais fundo em meu mundo submerso, o mundo de Raphaël.
Permaneci assim por horas e quando o frio da noite tornou a água incômoda,
Levantei-me. Penteei os cabelos molhados, acendi um cigarro malcheiroso.
Lancei mais uma olhada ao meu redor. Tive fome.
Pensei comigo uma brevidade. Hora de comer. Enxuguei a única lágrima frouxa que pendeu de meus olhos frouxos
E saí, batendo a porta. Minha Hégira.
Lancei-me para a noite escura e fria, mais escura que meu apartamento,
Não sei se mais fria que o mundo onde me escondi.
Interiores vampirescos. Funestos.
E pensar que apenas um toque seu me faria voar daqui.

[ ... ]

[ Nota: Os trechos destacados pertencem à canção Je Suis Malade, de Serge Lama. ]

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Por Raphaël Crone.