terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Mundo Obsceno.

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[ Se não vivessemos perigosamente,/ tremendo à beira dos precipícios,/ não estaríamos nunca deprimidos,/estou segura disto,/ mas seríamos cinzentos, fatalistas e velhos. ] * [ Virginia Woolf ]
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[ Vivemos as nossa vidas,/ fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos:/ é tão simples e tão normal como isso./ Alguns atiram-se de janelas,/ ou afogam-se, ou tomam comprimidos;/ um número maior morre por acidente,/ e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou,/ com muita sorte, pelo próprio tempo./ Há apenas uma consolação:/ uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem,/ contra todas as probabilidades e expectativas,/ abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginávamos,/ embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas),/ saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras,/ muito mais negras e mais difíceis./ Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã,/ mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais. ] * [ Michael Cunningham ]


Às vezes, sinto necessidade de estar triste,
Assim como as outras pessoas têm necessidade de morrer.
Tudo às vezes.

Às vezes, o silêncio e a instrospecção doentia lavam-me por dentro,
Preparam-me para continuar a plantar,
Ou pelo menos, escondem-me dos meus bichos-papões,
Dos monstros do meu armário, carregam-me para um mundo particular, um mundo obscenamente irreal e maravilhoso
E me permitem dormir em paz por um minuto.

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Por Raphaël Crone.

Volta.

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[ Caríssimo,

---Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor.
---Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler.
---O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom.
---Quero dizer isso — toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida.
---Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

Virginia
]



Eu realmente odeio esta parte, mas ela se aproxima outra vez.
O mal dos poetas, o mal do século, o mal da morte.
Más-formações sentimentais, moralmente imprecisas, precisamente amorais.
A angústia, o aperto no meio da noite,
O terror noturno: o medo da solidão.
Você, que com braços tão vividamente amorosos me enlaçou outrora,
Você, que se preocupou com meu sono e meu apetite,
Você, que se fez um comigo; meu medo: onde está você agora?
A terrível bruma que toma conta da cidadela, o vôo rasante das harpias.
O som melancólico do piano e o som gutural da tuba,
Uma melodia candeciada e sepulcral, efemérides do que teve forma.
Esta deprimente onda que me varre, que me impede de deixar a cama,
Que não me permite pensar e nem escrever,
Que me faz fugir da luz do dia, que me faz chorar violentamente durante a noite.
Ela chega e toca meu ombro.
Sem pedir licença, ela adentra a casa, instala-se em minha alcova,
Faz uso dos meus objetos e lança sobre mim seu terrível encanto.
E eu me rendo a ela uma vez mais (a felicidade brinca de esconde-esconde comigo), leitor.
Deito-me ao lado do morcego negro, ele me abraça,
Eu gelo: tudo é entendimento e monotonia. Tudo é escuridão,
Sertões intransponíveis. Serestas mortas.
Eu odeio esta parte, mas ela me pertence. Devo alimentá-la, como bom pai.
Devo esperar a próxima primavera e por agora, apenas esperar.
Um novo dia onde eu possa voltar, uma nova volta,
Esperança que não existe, mas que, ainda assim, a minha imaginação não deixa de esperar.

[ INTRO: ] *Carta de Virginia Woolf a Leonard Woolf, adaptada por Michael Cunningham em seu livro, The Hours.
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Por Raphaël Crone.