segunda-feira, 29 de junho de 2009

Insustentabilidade

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De vez em quando eu tento me aparar,
Percebo que vou cair e ponho uma mão por baixo de mim,
Tento amortecer o tombo.
Quase nunca consigo. Caio e me esborracho.
Um aprendizado incoerentemente diáfano.
Uma bruma que me ensina a ser homem.

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Por Raphaël Crone.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Desejo.

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[ Lamba as minhas pernas, eu estou em chamas./ Lamba os meus lábios, eu sou o desejo./ Eu amarrarei suas pernas,/ Manterei você contra meu peito./ Não, você não está livre de mim,/ Sim, você não está livre de mim./ Eu farei você lamber minhas angústias,/ Eu vou torcer sua cabeça, diga:/ Você sabe que não está livre de mim. ] * [ PJ Harvey ]



Não quero um amor a quem eu possa espoliar,
Que faça todas as minhas vontades e que se curve ante meus vereditos.
Que me obedeça e nunca me conteste,
Que não pense ou sinta.
Não quero.
Quero um amor inteligente, que tenha desejos,
Que possa me desejar por vontade própria, que me veja como sou,
Falho e sublime. Perfeitamente incapaz de ser sozinho.
Quero um amor que me complete porque quer me completar
E não porque eu assim o quero.
Quero um amor que tenha paciência quando eu estou em crise
Quem, apesar de me magoar por vezes, eu sinta prazer em perdoar
E que mantenha sempre em vista que nenhuma tempestade furtiva significa o fim ou o desencanto,
Apenas o contratempo, que existe mesmo onde existe o maior amor do mundo.
Quero um amor humano, longe das divindades etéreas,
Um amor que me faça voar, mas que seja tão palpável que eu possa apertá-lo com a força das minhas mãos,
Um amor pleno e natural. Sentimental e prático.
Que me corrija e que me impulsione,
A quem eu possa moldar e aprender com.
Justamente por tanto querer um amor assim, eu acabei encontrando.
Felicidade de quem muito algo desejou e hoje tem.
A ciência de que eu não posso livrar-me de mim,
E que ele, da mesma forma, não pode e não quer me deixar aqui,
Independente de quão bom ou quão ruim eu seja.

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Por Raphaël Crone.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Passagens da Manhã.

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[ Oh, Mrs. Dalloway, always giving parties, to cover the silence... ] * [ Virginia Woolf ]


Eu me levanto pela manhã seguro por uma mão caduca,
Mão de inexplicável Melancolia.
O austro sopra, o Sol lá de cima, timidamente, vigia o mundo entre nuvens,
O barulho do trânsito na rua lá fora prossegue...
Meridionais.
Embora nenhum motivo aparente exista, "melancolizo-me".
Pouco me importa a comida na dispensa, o pagamento depositado em minha conta no banco,
A minha aparência jovem e bonita...
Tudo se torna indiferente frente à minha indiferença.
Tudo me é insuportavelmente enfadonho quando ele não está aqui por perto.
[ ... ]
Penso por um instante o que a Clarissa de Cunningham outrora pensou antes de mim,
Pela cabeça do outro e que Virginia pensara antes ainda,
Em meio à sua sana loucura, pelos devaneios da Sra. Dalloway*:

Minha vida é trivial. Eu sou TÃO trivial [ ... ]

E acredito:

Quando estou sem ele por perto, todo o resto parece, sim, meio... trivial...

Afogo-me nos sons do piano de Philip Glass e nos lamentos do acordeão de Yann Tiersen:
Pura e pura melancolia. Melancolia de Amélie.
Mas não me culpo. Apenas faço o que sou impelido a fazer.
Levanto-me, ainda amparado pela mão caduca, vou ao banheiro
E frente ao espelho, a dona da mão me mostra meu rosto.
Manda-me seguir o dia, bem ou mal. Segui-lo.
E eu sigo. Ninguém saberia. Ninguém saberia o que vai aqui dentro se eu não contasse hoje aqui.
Ninguém adivinharia, tão bem dissimulo.
Dons inatos. Aprendidos.
Passagens da manhã.


[ * Referências às obras The Hours, de Michael Cunningham - 2000 - e Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf - 1925. ]

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Por Raphaël Crone.

domingo, 31 de maio de 2009

De Quando Eu Lhe Odeio.

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[ Você está longe demais para eu trazê-lo para perto/ E alto demais para olhar para baixo,/ Apenas insistindo em sua dose diária./ Eu sei que você nunca precisou de ninguém,/ Exceto dos papéis para enrolar a sua erva,/ Como você pode dar o que você não tem?/ Você continua sonhando com o topo/ Mas desiste antes que derrame uma gota de suor,/ Alimenta seu cérebro vazio/ Com sua maconha hidropônica./ Comece jogando com você mesmo,/ Você se diverte mais dentro de sua concha,/ Prazer em conhecê-lo, mas eu tenho outras coisas para fazer./ Eu vou embora de novo, porque eu tenho esperado em vão,/ Você segue tão apaixonado por você mesmo!/ Se eu digo que meu coração está dolorido,/ Isso soa como uma metáfora barata,/ Então eu não repetirei mais isso./ Eu preferiria tomar minha sopa com um garfo,/ Ou dirigir um táxi em Nova Iorque,/ Porque falar com você é trabalhoso demais./ Então qual é o ponto de desperdiçar todas minhas palavras,/ Se é exatamente igual ou até pior/ Que ler poemas para um cavalo?/ Você continua sonhando com o topo,/ Mas desiste antes que derrame uma gota de suor,/ Alimenta seu cérebro vazio/ Com sua maconha hidropônica./ Eu aposto que você encontrará alguém como você,/ Porque há um pé para cada sapato./ Eu lhe desejo sorte, mas eu tenho outras coisas para fazer./ E eu vou embora de novo, porque eu tenho esperado em vão,/ Você segue tão apaixonado por você mesmo!/ Se eu digo que meu coração está ferido,/ Isso acaba parecendo uma metáfora barata,/ Então eu não repetirei mais isso nunca mais. ] * [ Shakira ]


Eu torno-me em dentes cerrados, mandíbula contraída,
Masseteres e temporais mastigantes, desejoso de mastigá-lo neste minuto.
Eu me canso, enfado: falar com você é tão inútil quanto me calar.
Eu vou, eu volto, eu me viro do avesso,
Ímpetos quase assassinos de esganá-lo quando me dá as costas,
Quando se cala enquanto eu lhe grito.
Ímpetos brutais de tomá-lo entre minhas mãos e amassá-lo como se amassa um papel.
Eu desejo seguir, mas você me puxa pra baixo,
Palavras inocentemente cheias de malícia que acendem as chamas que me consomem silenciosamente.
Não há esperança de salvação e nem sombra de misericórdia: há animalidade.
Há instintos recolhidos e expostos, um vai-e-vem de sensações e considerações ora piedosas, ora monstruosas,
Uma vontade de fazê-lo sofrer quando me faz sofrer,
Um egoísmo pulsante, que se movimenta em espasmos violentamente premeditados,
Epilepsia de sentimentos, convulsão de tudo o que é humano e animal em mim.
Você me leva ao extremo, me faz ora amar, ora odiar religiosamente,
Me faz mandar os santos ao quinto dos infernos.
As horas presenciam as louças quebradas, os rompantes de loucura,
Efervescência de um espírito em ebulição.
As horas contemplam. E as horas passam.
O que não passa?
Eu volto a mim, me acalmo. Resigno-me, resolvo-me. Resolvo-lhe.
Sigo com você. Amor? Quem sabe.
Resigno-me. E sigo com você. É só.

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Por Raphaël Crone.

sábado, 30 de maio de 2009

Velha Consideração de Jovem.

---[ Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. ] * [ Guimarães Rosa ]

[ Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. ] * [ Clarice Lispector ]

[ A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. ] * [ Manoel de Barros ]


Julgo um erro tentar cruzar a vida num barco de entendimentos.
As filosofias não são feitas de matéria e a vida é simples filosofia.
Perdemos muito de nós tentando compreender.
Perdemo-nos em meio às brumas do mar que navegamos
E o tempo passa a passar nessa hora, inexoravelmente, como Senhor de nós.
Julgo um erro tentar entender toda a vida.
Há momentos que não foram feitos para serem entendidos
E a maioria dos entendimentos não abarcam um pingo de tudo o que gostaríamos de saber.

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Por Raphaël Crone.

Brevidade Sobre a Morte e a Vida.

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[ Não ficar melancólico, mas guardar na lembrança as melhores coisas da vida. E não abrir mão de ser feliz. A busca pela felicidade já justifica a existência. ] * [ Dorival Caymmi ]


Nunca pensei muito em morrer.
Não sou do tipo que vive pensando na Morte ou que a deseja como Redentora de uma vida fraca.
Gosto da Vida: gosto da sua ironia que soa como um tapa na cara:
Agudos e sensações dolorosas.
Gosto da Vida: gosto dela talvez porque não imagino que vá viver muitos anos.
Apenas uma impressão.
Não penso que chegue a ser velho um dia e isso na maior parte do tempo não me aborrece.
Mas não me detenho pensando na Morte.
Minha única vontade quanto a isso é a de morrer vendo o Mar.
Como Dori quis um dia, por uma vida toda, eu também quero.
Queria morrer vendo o Mar: em seus braços, com o sal de seu abraço me embalando.
Um desejo romântico, leitor.
Desejo de poeta jovem que sou.

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Por Raphaël Crone.

Introduzindo-Me: Segredos.

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[ Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. ] * [ Clarice Lispector ]

[ Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. ] * [ Clarice Lispector ]

[ Quanto mais me despedaço, mais fico inteira e serena. ] * [ Cecília Meirelles ]


Contradigo-me: profundamente e repetidamente contradigo-me.
Ambulantemente e espalhafatosamente.
Em certos momentos, isso me traz certo orgulho bobo:
Faz-me sentir vivo, rebelde. Quase que revolucionário dentro do meu mundo.
Mas na maior parte do tempo isso me frustra,
Me faz duvidar e perder tempo que não tenho a perder.
Gostaria de escrever, mas pouco escrevo
E gostaria de desenhar, mas nunca pego papel e grafite.
Gostaria de cantar e encenar e pintar,
Mas nunca tomo grande atitude para expandir a minha Arte,
Que é essencialmente bela e potencialmente devastadora.
[ ... ]
Gostaria de revolucionar o mundo, nem que fosse o meu próprio,
Com coisas que eu bem sei fazer,
Mas não o faço; guardo a minha Arte quase toda pra mim
Como se o mundo exterior não precisasse dela
(E de fato, muitas vezes me questiono se ele realmente precisa).
Contradigo-me: faço o que não gosto e o que gosto, pouco faço.
Gostaria de fazer mais, mas os monstros que moram dentro de mim exteriorizam-se quando resolvo abrir-me,
Tenho medo do que mora em meu armário. Dos gigantes que assolam as planícies do meu self.
A minha Arte transporta-os para os olhos alheios.
Poderia-se especular que talvez um dos motivos pelos quais pouco uso minha Arte-Musa seja justamente este:
O medo de que ela exponha mais do que eu gostaria de expôr,
Mas garanto-lhe, leitor, metalinguísticamente: Não é.
Na realidade, sinto um mórbido prazer em despir-me de meus acertos e falhas perante as palavras e imagens de minhas obras,
Sinto prazer em mostrar que sou feito de deliciosa e inescrupulosa humanidade,
Sem intenções de perfeição ou santidade, sem buscar o Paraíso.
Talvez o real motivo nem eu conheça: indolência ou egoísmo, sabe-se lá.
Quem sabe o que se esconde aqui dentro, o que me motiva?
Nem mesmo eu bem sei, leitor.
E no fim, quem sabe não seja melhor que assim mesmo o meu eu-incomum continue?
Justamente assim: despudoradamente oculto e entre sombras se revelando.

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Por Raphaël Crone.

Última Noite.

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[ Turn the lights out,/ This shit is way too fucking bright./ Wanna poke my eyes out/ If you wanna mess with my eyesight./ Just let me get my head right,/ Where the hell am I?/ Who are you?/ What'd we do last night?/ Hey, who are you?/ What'd we do last night?/ Can't remember what I did last night,/ Maybe I shouldn't have given in but I just couldn't ./ I didn't but I think I might've,/ Everything, everything is still a blur.../ Can't remember what I did last night,/ Everything, everything is still a blur.../ Can't remember what I did last night,/ Everything, everything is still a blur... ] * [ Britney Spears ]


Acordei rolando entre lençóis cheirando a rosas e sexo,
Tomado por um torpor libidinoso, uma noite de aromas ilícitos.
Libertinagens.
Não consigo me concentrar, tudo parece diferente,
Como se a minha mente pedisse uma xícara de café forte para poder despertar enfim.
O que se passa comigo?
O que acontece?
De um canto do quarto mal iluminado pelas janelas de cortinas semicerradas
Emana o som de uma canção que eu não entendo bem,
Um som metálico de guitarras japonesas, gemidos ininteligíveis.
Ininteligível recordação que me vem e que me deixa.
Observo meu corpo nu entre os lençóis da cama
E igualmente noticio um vulto nu parado à porta do quarto, observando-me com um esgar de sorriso rasgando os lábios.
Pas de malice, pas de malice...
Uma sensação de cansaço me toma e mesmo percebendo que muito de mim está exposto aos olhos do estranho, não me dou ao trabalho de me cobrir.
Uma quebra de decoro.
A luz mal filtrada que ultrapassa os cortinados toca a minha pele salientando a sua brancura e a sua firmeza,
Por um minuto observo os traços em meu abdome, com a língua sinto meus lábios intumescidos,
Passando a mão por meu pescoço, sinto um frêmito que enrijece meus mamilos...
E o vulto a me observar. Interrogações interiores.
Não me recordo de muita coisa, tudo ainda é um borrão,
Tudo é confuso: o leito onde me deito e a sombra com quem me deitei outrora.
Sento-me na cama e meu corpo se insinua, tomo a sombra que se aproxima sorrindo e devagar por uma das mãos,
Faço-a sentar à minha frente e esta me toca: eu me arrepio.
Deitamos: as horas prosseguem.
Eu ainda não entendo, tudo ainda é um borrão em minha cabeça...
O que acontece?
Mas já não me importa tanto mais.

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Por Raphaël Crone.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Piano.

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[ Je ne rêve plus,/ Je ne fume plus,/ Je n'ai même plus d'histoire./ Je suis sale sans toi,/ Je suis laide sans toi,/ Comme une orpheline dans un dortoir./ Je n'ai plus envie de vivre ma vie,/ Ma vie cesse quand tu pars,/ Je n'ai plus de vie et même mon lit,/ Se transforme en quai de gare,/ Quand tu t'en vas./ Je suis malade,/ Complètement malade,/ Comme quand ma mère sortait le soir,/ Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir,/ Je suis malade,/ Parfaitement malade,/ T'arrives on ne sait jamais quand,/ Tu repars on ne sait jamais où,/ Et ça va faire bientôt deux ans,/ Que tu t'en fous. ] * [ Serge Lama ]


Observava o mundo lá fora pela janela do meu apartamento,
Fim de tarde.
As sombras da noite passavam a envolver tudo o que encontravam, o animado e o inanimado,
Como um manto de donzela que ocultava as insinuantes formas do dia que usado foi,
E que findava-se indolente.
Nenhuma luz se achava em nenhum recinto cá dentro,
A não ser três velas mortiças que queimavam em um candeeiro sobre a cauda do piano mudo no canto da sala.
Uma luz baça, uma melancolia vívida. Coisas do crepúsculo.
Ouvia a água deslizar pelas torneiras, enchendo a banheira há alguns metros dali.
Sentia um cheiro doce de algum perfume que eu não usava,
Quem sabe o que vinha das rosas do jardim de inverno.
Quem sabe, o cheiro da noite fria que, trotando, aproximava-se do mundo cá embaixo.
[ ... ]
Observei-me por um minuto na vidraça da janela:
Jovem alto e magro, cabelos longos despenteados, um rosto onde se lia outrora um misto de luxúria e juventude exuberante
E onde agora se lia apenas uma distância substancialmente material. Corpórea.
Uma saudade noturna, que Frédérich Chopin outrora tentou transformar em canção.
Observei minha pele alva e meus músculos firmes,
Toquei-me e senti frio. Um movimento decidido contraiu meu abdôme
E um calafrio transpassou minha espinha rija.



[ Je suis malade, complètement malade,
Comme quand ma mère sortait le soir

Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir. ]



Embore goze de perfeita saúde do corpo, estou doente cá dentro.
Je suis malade, complètement malade.
Este vazio aberto pela distância entre você e eu é como uma perfuração de adaga,
Um cimitarra persa que abre minhas entranhas românticas: agonie, agonie.



[ Eu estou doente, completamente doente,
Como quando a minha mãe saía à noite

E me deixava sozinho com o meu desespero . ]



O contraste de minhas calças escuras com o baço de meu corpo
E os fios desalinhados de cabelo caindo sobre meus olhos,
Criavam como que um belo fantasma de Álvares de Azevedo:
Noites na taverna, Macário.
Deixei os cortinados e vidraças,
Sentei-me ao piano mudo. Falemos, pois.
O som triste da canção alçou vôo dos meus dedos,
Encheu a sala, ultrapassou os véus das cortinas,
Adentrou os cômodos silentes,
Misturou-se à agua tépida que rolava das torneiras no banheiro regelado.
Quis tornar-me em canção, tentando alcançá-lo onde estivesse:
Fiz-me harpejo, apogiatura, fiz-me movimento de dedos coordenadamente desesperado.
Escalas ascendentes, descendentes. Diatônicas.
Ora abafado pelos pedais, ora prolongado. Estiquei-me e reduzi-me.
Piano, pianissimo. Forte, molto forte.
Mon rendez-vous, chéri.
Procurei tornar-me Rapsódia de Liszt, Movimento triunfante de Brahms,
Fuga de Bach.
Tornei-me Minueto e dos tristes. Faltou-me força para continuar.
A luz mortiça mal iluminava meus olhos e por um instante meus dedos calaram-se.
Negaram-se a prosseguir, inútil que era.
Continuei sentado na banqueta dura, desconsolado como criança de castigo.
O pensamento no nada e o desejo, que sabia muito bem por onde andava.
Andrajos de mim. Trapos exuberantemente sentimentais.
Levantei-me. Tirei as calças, joguei-as por sobre a poltrona e dirigi-me ao banheiro.
Entrei na água morna e mergulhei em mim mesmo.
Adentrei mais fundo em meu mundo submerso, o mundo de Raphaël.
Permaneci assim por horas e quando o frio da noite tornou a água incômoda,
Levantei-me. Penteei os cabelos molhados, acendi um cigarro malcheiroso.
Lancei mais uma olhada ao meu redor. Tive fome.
Pensei comigo uma brevidade. Hora de comer. Enxuguei a única lágrima frouxa que pendeu de meus olhos frouxos
E saí, batendo a porta. Minha Hégira.
Lancei-me para a noite escura e fria, mais escura que meu apartamento,
Não sei se mais fria que o mundo onde me escondi.
Interiores vampirescos. Funestos.
E pensar que apenas um toque seu me faria voar daqui.

[ ... ]

[ Nota: Os trechos destacados pertencem à canção Je Suis Malade, de Serge Lama. ]

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Por Raphaël Crone.

sábado, 23 de maio de 2009

C'Est Manque.

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[ Chanson juste pour toi,/ Chanson un peu triste, je crois,/ Trois temps de mots froissées,/ Quelques notes et tous mes regrets,/ Tous mes regrets de nous deux,/ Sont au bout de mes doigts,/ Comme do, ré, mi, fa, sol, la, si, do./ C'est une chanson d'amour fané,/ Comme celle que tu fredonnais,/ Trois fois rien de nos vies,/ Trois fois rien comme cette mélodie,/ Ce qu'il reste de nous deux,/ Est au creux de ma voix,/ Comme do, ré, mi, fa, sol, la, si, do./ C'est une chanson en souvenir/ Pour ne pas s'oublier sans rien dire/ S'oublier sans rien dire. ] * [ Carla Bruni ]


Sinto saudade dos meus pais, sempre tão carinhosos comigo.
Sempre me apoiando, me suportando, me impulsionando.
Tive que deixá-los e vir pra longe,
Seguir a minha vida, seguir o meu amor.
Não me arrependo, pois tenho-os cá comigo,
Na grande e densa profundidade que habita meu peito,
Mas, inevitavelmente, sinto uma saudade imensa deles.
Na maior parte do tempo, ela é inebriada pelas ocupações cotidianas
E dissimulada sob o peso das horas ativas.
Porém momentos há em que ela põe a cabeça pra fora desta imensidão cá dentro
E noticia sua presença - Eis-la! Olá, companheira!
Aconteceu hoje. Um telefonema, conversação sentimentalmente prática,
Preocupações com minha alimentação e minhas finanças,
Necessidade de saber se estou bem cá distante de lá onde nasci.
Depois que o telefone se calou, eu chorei:
Emotivamente abalado, chorei como chora criança.
Apenas um cachorrinho testemunhou minhas lágrimas e tentou me consolar,
Lambendo meu pescoço.
Levantei-me, fumei um cigarro melancólico e fui cuidar da vida.
Inegavelmente, eles são o meu tesouro.
Eles são a melhor parte do que hoje habita esta escuridão cá dentro.

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Por Raphaël Crone.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mon Âme.

-- [ Tu es ma came,/ Mon toxique, ma volupté suprême./ Mon rendez-vous chéri et mon abîme,/ Tu fleuris au plus doux de mon âme./ Tu es ma came,/ Tu es mon genre de délice, de programme./ Je t'aspire, je t'expire et je me pâme,/ Je t'attends comme on attend la manne./ Tu es ma came,/ J'aime tes yeux, tes cheveux, ton arôme./ Viens donc là que j'te goûte que j'te hume,/ Tu es mon bel amour, mon anagramme./ Tu es ma came,/ Plus mortelle que l'héroïne afghane,/ Plus dangereux que la blanche colombienne,/ Tu es ma solution, mon doux problème./ Tu es ma came,/ A toi tous mes soupirs, mes poèmes,/ Pour toi toutes mes prières sous la lune,/ A toi ma disgrâce et ma fortune./ Tu es ma came,/ Quand tu pars c'est l'enfer et ses flammes,/ Toute ma vie, toute ma peau te réclamenton,/ Dirait que tu coules dans mes veines./ Tu es ma came,/ Je me sens renaître sous ton charme,/ Je te veux jusqu'à en vendre l'âme,/ À tes pieds je dépose mes armes./ Tu es ma came, tu es ma came. ] * [ Carla Bruni ]


Eu sussurro à francesa em seus ouvidos,
Enquanto um violão lamurioso geme perdido no espaço:

[ Você é meu vicio, você é meu vicio.
O meu produto tóxico, a minha volúpia suprema.
O meu encontro preferido e meu abismo.


Você até faz a minha alma mais doce.
]

Você até faz a minha alma mais doce.

Eu mordisco a sua orelha e sinto que o eu-você nos arrepiamos.
Eu toco o seu peito e encontro um mamilo:
Você, o meu vicio.
À francesa, eu "francesamente" prossigo meu lamento:

[ Você é meu vicio. É o meu tipo de delicia, de programa.
Eu te aspiro, eu te expiro e desmaio.
Eu te espero como se espera o maná.
Você é meu vicio,
Gosto dos teus olhos, dos teus cabelos, do teu aroma.


Venha, então eu te enrolo e eu te fumo.
Você é o meu belo amor, o meu anagrama.
Você é meu vicio,
Mais mortal que a heroína afegã,
Mais perigoso que a cocaína colombiana.
Você é a minha solução, o meu doce problema.
]
Eu me debruço sobre as suas costas nuas.
Eu aliso a sua pele como tecido, eu lambo a sua nuca como um gato,
Eu junto a nudez de minha pele à da sua,
Eu saboreio o silêncio e o sorriso malicioso que o seu rosto esboça,
Eu finjo aquietar-me, apenas para recomeçar,
Insistente:

[ Você é meu vicio,
A você todos os meus suspiros, os meus poemas.
Para você, todas as minhas orações e a lua.
A você a minha desgraça e a minha fortuna.
Você é meu vicio,
Quando vai embora, é como o inferno e as suas chamas,


Toda minha vida, toda minha pele te reclama,

Diria-se que você escorre nas minhas veias.
]
Eu me viro e lhe encontro, frente a mim,
Lábio a lábio, sua alva tez frente a minha alva tez,
Cesso as poesias, porque existe um momento,
Onde a vida começa,
Em que toda a poesia é vã, e silenciosa.
Eu lhe encontro dentro de mim e eu me encontro dentro de você.
Um vicio que me sustenta, que me sacia,
Que mata a minha fome e que inebria os meus sentidos.
Oh, mon dieu.
À francesa, ao final, eu recomeço.
Eu lhe canto com voz rouca e o violão recomeça também, ao longe,
Ainda perdido no tempo e no espaço,
Mas canta e eu o acompanho,
E você, infantilmente deitado em meus braços,
Em meio a lençóis desfeitos, me acompanha
E ouve (e sorri):

[ Você é meu vicio,
Eu te quero que até vendo a alma.


Aos teus pés eu jogo as minhas armas.

Você é meu vicio, você é meu vicio.
]

[ Nota: Os excertos destacados pertencem à canção Tu Es Ma Came, de Carla Bruni, encontrada no álbum Comme Si De Rien N'Etait. ]
___
Por Raphaël Crone.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O Jovem Adam.

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[ Carro superaquecido,/ Pule para fora do meu banco,/ Para o lado da rodovia, querido./ Nossa estrada é longa,/ Sua influência é forte,/ Por favor, nunca desista.../ Eu sei que não te conheço,/ Mas te quero muito./ Todo mundo tem um segredo guardado,/ Mas será que é possível mantê-lo?/ Não, eles não conseguem!/ Dirigindo rápido agora,/ Não pense que eu sei ir devagar./ Onde você está agora?/ Eu o sinto por perto,/ Aí está você!/ Esfrie esses motores,/ Acalme esses jatos./ Eu te pergunto o quanto quente isso pode ficar/ E como você fará para secar essas gotas de suor.../ Lentamente você diz: "Eu ainda não cheguei lá". ] * [ Maroon 5 ]


Um segredo. Ella sopra em meus ouvidos uma corrente de outono, fria da noite:

[ Veja, poeta: uns pés de homem sob uma mesa, roçando umas pernas de mulher, mulher dum tal bruto marinheiro. ]


[ Pressuposto - Início da história: ]
A mulher - Ella - alta, cara limpa, magra e branca como a cera.
Uma miragem de Álvares de Azevedo, ultra-romântica.
Um minuto: como ultra-romântica, se ela come e mastiga a mágoa de não conhecer romantismo,
Posto que tal mimo foi-lhe negado?

[ Registro do poeta: Interrompo-me por um instante. A noite cai enquanto escrevo isto. Ouço um violão ao longe. E vejo fumaças de um bodoque. Ao longe. ]

Ela cospe fora na cara de seu marido velho, barbudo e fedorento o protótipo de amor bruto que ele soube lhe dispensar. Amores perros de Iñarritu.
Também são amores, apesar de diferentes em forma.
Não dizem que os brutos também amam?
[ O fio da história: ]

Eis que então um outro chega, jovem que é, e roça sua perna desnuda nas dela, desnudas, sob o nariz do marido, ocultas por uma mesa de pau ordinário, breakfast time.
Ordinárias tábuas que erguem a alcova adúltera, onde ela busca redenção
E, acredite-me, romantismo. Dinner time.
Uma vida esperando por um beijo furtivo entre as prateleiras da cozinha.
Um shake-hands dissimulado, que transforma-se em penetrações de sexual moralidade,
De cândida imoralidade e de amoral possibilidade de julgamento desapaixonado,
Sim, assim que a noite cai.
O marido é bruto, mas é velho, cansado. Ele precisa dormir cedo.
Laços desfeitos, buscas pela felicidade, insatisfações. Cantos piegas e dolorosos,
Segredo que outrem guarda a sete chaves e que o poeta, temerário, ousa desvendar:

-Eu mal lhe conheço,
Mas eu lhe desejo tanto!

O diáfano rosto da mulher do marinheiro. Austeridades.
Um desejo controlado de desvendar o que se esconde por detrás de um véu proibido, púrpura como o sangue que escorre-lhe, por vezes, por dentre as pernas.
Os anos da juventude que não morrem por inteiro.
As lágrimas não tem cor, por isso não deixam marcas no mundo.
O seu jovem Adam, objeto e instrumento de descoberta, libertação e pecado.
Penalidade e ameaça. O preço do que é pecado, ainda que pecado seja apenas uma palavra suja e inexpressiva.
[ Contextualizo-me, leitor: ]
Um segredo afinal. O que a mulher do marujo guarda, o que o jovem Adam guarda,
O que sabe deus quem mais lá anda guardando também.
Meandros recônditos, soturnos. Silvos de serpente e maldições os protegem.
Segredos. O peso que encerra a língua na boca,
A tranca que aprisiona a palavra.
Calabouços onde a alma se tranca por própria vontade.

[ ? ]




[ Nota: Texto livremente inspirado no filme Young Adam, de David Mackenzie, com Tilda Swinton e Ewan McGregor e na canção Secret, da banda americana Maroon Five, encontrada no álbum Songs About Jane. ]
___
Por Raphaël Crone.

Com Meus Dentes.

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[ Decifra-me, ou te devoro. ] * [ Ésquilo ]


O piano de Philip Glass costuma cantar pra mim,
Assim como fotos velhas e quadros ainda mais costumam contar-me histórias.
Eu sou feito de arcaismos e modernidades,
Eu me enlaço em minha saudade,
Eu sou necessariamente feito de insatisfações.
Quando o lago de minha alma goza de placidez,
Eu arranjo logo uma pedra para torná-lo revolto,
Nem que seja para simplesmente contemplar um pouco do seu movimento,
Nem que seja para provocá-lo, quando o "exo-vento" nao o faz.
Eu preciso de barulho, de engrenagens, de palavras ferozes,
Eu preciso de saciedade, ainda que esta nunca me sacie,
Eu preciso de misericórdia, mas nunca de compaixão.
Eu sou a juventude, mesmo que ultrapassada.
Eu sou um parceiro eterno, porém trabalhoso.
Eu sou o que uma palavra minha jamais explicou.
Quem sabe, eu seja a Esfinge que devorava viajantes incautos.


[ Decifra-me, ou te devoro. ]
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Por Raphaël Crone.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Enfado .

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Tem uma hora em que você se cansa de insistir.
Se o redondo deveria ser quadrado e não deixa de ser redondo,
A força certamente não há de ser útil para enquadrá-lo.
Palavras repetidas tornam-se mortalmente enfadonhas,
Profundamente dolorosas, como lacerações de espadachim.
O tempo, que é senhor das coisas do homem e de deus,
(Que não mata o Verbo e que aprimora o verbo)
Encarrega-se de aclarar os erros
E coroar com a razão os justos.
A paciência nunca deixa de ser virtude sábia, pois.

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Por Raphaël Crone.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Amor, Que Não é Mera Palavra

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Desempregado, cansado,
Suado, sujo, um dia inteiro na rua esperando o tempo passar,
Sem poder voltar logo pra casa,
Doente, com febre e tossindo muito.
Exausto.
Foi assim que eu cheguei na sua casa no fim da tarde.
Você me levou para tomar um banho, me emprestou roupas limpas.
Trouxe um comprimido contra a febre e mel contra a tosse.
Eu me deitei ao seu lado naquela cama apertada,
Você me abraçou e me beijou carinhosamente.
Eu adormeci em seus braços.
Horas depois não tossia mais e já estava melhor.
Acima de tudo, tinha a minha saudade saciada.
Eu lhe adoro, meu amor.
Você cuida de mim a cada dia,
Você, meu remédio e meu alento,
A melhor parte de mim que se transforma em poesia por minhas mãos.

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Por Raphaël Crone.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Uma Rendição

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[ A ponta dos seus dedos pela minha pele,/ As palmeiras balançando ao vento,/ Imagens./ Você me cantava músicas de ninar espanholas,/ A mais doce tristeza em seus olhos,/ Truque inteligente./ Eu nunca quero te ver infeliz,/ Eu pensava que você quisesse o mesmo pra mim./ Adeus, meu quase amante,/ Adeus, meu sonho sem esperança./ Estou tentando não pensar em você./ Você não pode apenas me deixar?/ Adeus, meu romance sem sorte,/ Virei minhas costas pra você./ Eu devia ter sabido que você me traria dor,/ Quase amantes sempre trazem. ] * [ A Fine Frenzy ]


Eu estou partindo neste momento,
O meio-dia é morto.
Eu estou mudando o meu modo de enfrentar a vida.
Por você, amor.
Eu estou deixando de justificar os meus erros,
Estou aceitando as suas justas reprimendas por meu comportamento injusto
E estou abandonando a minha ira descabida.
Estou soltando das mãos de um ciúme intolerante
E resignando-me a pensar antes de dizer palavra
Ao invés de sentir antes de proferir palavra.
Estou reformulando-me. Por você.
Porque você não é o meu quase amante.
Você é o meu coração e o meu sorriso.
Eu poderia distarciar-lhe se assim não fizesse
Quando, realmente, tudo o que eu mais quero é segurar-lhe firmemente em meus braços.
Eu aceito o seu amor e baixo as minhas reservas.
Eu pisoteio a minha efêmera e brutal humanidade,
A violência impressa em minha raiva e em minha angústia.
Deixo de vitimizar-me e de espezinhar-lhe.
Eu me desculpo, amor, porque você é o romance que a vida me mandou.
Um por eternidade. Você, o meu romance de eternidade.
Dou adeus a um eu incoerente para não dizer adeus a você,
Por muito lhe amar,
Por você ser apenas e simplesmente o meu coração,
Sem o qual, piegas que sou, jamais poderia voltar a viver.

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Por Raphaël Crone.

domingo, 12 de abril de 2009

O Rasgo

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O rasgo acontece por que tem que acontecer:
Coesão inadequada e inadvertidamente ineficaz dos tecidos,
Pano de remendos.
Um fio que de tênue deixa de ser fio para ser fiapo,
Menos fio que um simples fio de cabelo,
Que é tudo menos simples, visto que é vivo.

Sentimentos são feitos de pano, eu penso.
Se rasgam e se costuram, remendos indissolúveis.
Sentimentalidades remendadas.

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Por Raphaël Crone.

quinta-feira, 19 de março de 2009

De Noites

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[ São tempos difíceis para os sonhadores. ] * [ Jean-Pierre Jeunet ]


Hoje queria morrer, nem que não fosse de verdade.
Queria me esquecer do mundo e me lembrar um pouco de mim,
Do menino que fui e do homem que sou.
Queria me perder em meio a mim mesmo.
Uma confissão indecente.

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Por Raphaël Crone.

Um Medo.

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[ Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas./ E me encantei. ] * [ Manoel de Barros ]

[ Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora,/ pois tudo passa a acontecer dentro de nós. ] * [ Clarice Lispector ]

[ Solução melhor é não enlouquecer mais do que já enlouquecemos,/ não tanto por virtude, mas por cálculo./ Controlar essa loucura razoável:/ se formos razoavelmente loucos não precisaremos desses sanatórios/ porque é sabido que os saudáveis não entendem muito de loucura./ O jeito é se virar em casa mesmo,/ sem testemunhas estranhas./ Sem despesas. ] * [ Lygia Fagundes Telles ]



No meio das coisas miúdas me encantei.
No meio da inexistencialidade do que é belo e do que é terno.
Julgava que o beijo que lhe dei fosse o princípio da eternidade
E embora ainda me beije hoje, tenho medo por vezes.
Embora você segure a minha mão, tenho ciúmes.
Embora me prometa amor e referida eternidade, não me satisfaço.
Preciso de bebida forte e de sobriedade.
Preciso ajuntar minhas coisas miúdas, minhas partes de mim
Que eu mesmo lancei ao vento e que outros despedaçaram.
Preciso me inebriar com a taça de um vinho que não conheço.`
Preciso amar-me e perdoar-me, preciso de misericórdia.
Preciso de indulgência e salvação.
Tenho medo por muito amar, por que ninguém nunca muito me amou.
Tenho medo de beijar-lhe com os lábios da alma, por que ninguém nunca me concedeu mais que um beijo de carne.
Tenho medo de julgar-me afortunado, porque a fortuna não é para todos os que a querem ter.
Naquela noite eu beijei-lhe com lábios e lágrimas.
Eu beijei-lhe olhos, orelhas, face e coração.
Eu beijei-lhe com a comoção que me tomava,
Com o êxtase apático e recatado de minhas sensações.
Tenho medo de ser homem, neste momento, acredite.
Eu, que de tão valente, matei leões imaginários e medusas.
Tenho medo de ser homem agora, queria ser menino.
Deitar-me sobre a cama e não imaginar mais que uma bola e um livro no dia seguinte.
Desejava não saber que o mundo é mais que um livro e uma bola.
Ao mesmo tempo, amo-lhe. Este talvez seja o problema:
Amo-lhe tanto que tenho medo de tanto amar.
Tenho medo de amar sozinho ou amar demais.
Tenho o medo de quem já não é mais menino. Ele dói. Machuca.
Ele me assalta no meio da noite, ele me ameaça.
Seja ele real ou inventado, temido por não existir,
Mas por ser possibilidade, que de tão palpável, toma forma e corpo.
Toma voz própria e ameça, como o silvo da serpente.
Queria dormir como menino e temer somente o vento da noite.
Mas tenho medo de homem. Uma virtude que eu nunca desejei.

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Por Raphaël Crone.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Alguém Me Disse.

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[ On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,/ Elles passent en un instant comme fanent les roses./ On me dit que le temps qui glisse est un salaud/ Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux./ Pourtant quelqu'un m'a dit/ Que tu m'aimais encore,/ C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore./ Serais ce possible alors ?/ On dit que le destin se moque bien de nous/ Qu'il ne nous donne rien et qu'il nous promet tout./ Parait qu'le bonheur est à portée de main,/ Alors on tend la main et on se retrouve fou./ Pourtant quelqu'un m'a dit/ Que tu m'aimais encore,/ C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore./ Serais ce possible alors ?/ Mais qui est ce qui m'a dit que toujours tu m'aimais?/ Je ne me souviens plus c'était tard dans la nuit,/ J'entend encore la voix, mais je ne vois plus les traits/ "Il vous aime, c'est secret, lui dites pas que j'vous l'ai dit."/ Tu vois quelqu'un m'a dit/ Que tu m'aimais encore,/ Me l'a t'on vraiment dit/ Que tu m'aimais encore,/ Serais ce possible alors ?/ On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,/ Elles passent en un instant comme fanent les roses./ On me dit que le temps qui glisse est un salaud,/ Que de nos tristesses il s'en fait des manteaux./ Pourtant quelqu'un m'a dit/ Que tu m'aimais encore,/ C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore./ Serais ce possible alors ? ] * [ Carla Bruni ]


A possibilidade de você me amar. Seria possível, então?

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Por Raphaël Crone.

L' Envoûtement.

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[ Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc./ Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. ] * [ Manoel de Barros ]


Eu:

-Por que dentre tantos, por ele me encanto?

O espelho:

-Por que ele o ama com o fundo de seus olhos.
Porque ele se debruça na janela para contemplá-lo.
Porque a sua alma se debruça em seus olhos para vê-lo passar.

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Por Raphaël Crone.

Pensando Cá Comigo...

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[ Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas./ E me encantei. ] * [ Manoel de Barros ]

[ Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo./ Não é./ A coisa mais fina do mundo é o sentimento./ Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:/ "Coitado, até essa hora no serviço pesado"./ Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente./ Não me falou em amor./ Essa palavra de luxo. ] * [ Adélia Prado ]

[ No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal :/ "Meus filhos, o dia já envelheceu,/ entrem pra dentro". ] * [ Manoel de Barros ]



Eu envelheço como envelhece o dia,
Rejuvenescendo 24 horas a cada manhã.
Eu amo pelo luxo de amar.
Eu amo pelo cuidado de amar.
Por todos os ensinamentos que o amor me ensina.
Redundantemente.
As tais coisas miúdas que o Manoel e a Adélia conhecem bem.

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Por Raphaël Crone.

Paranoia.

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[ É preciso estar sempre embriagado./ Aí está: eis a única questão./ Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra,/ é preciso que se embriaguem sem descanso./ Com quê?/ Com vinho, poesia ou virtude, a escolher./ Mas embriaguem-se./ E se, porventura, nos degraus de um palácio,/ sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto,/ a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar,/ pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,/ a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala,/ pergunte que horas são;/ e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão:/ "É hora de embriagar-se!/ Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se;/ embriaguem-se sem descanso"./ Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. ] * [ Charles Baudelaire ]

[ Viver é super difícil. O mais fundo está sempre na superfície. ] * [ Paulo Leminski ]

[ Quem não souber povoar a sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente. ] * [ Charles Baudelaire ]


Eu rolo na cama durante a noite.
Uma sucessão de minutos enlouquecedoramente longos.
Eu espero o alvorecer e ele tarda.
Não falha, deveras, mas tarda sobremaneira.
Eu sinto saudades ou mais que isso:
Eu sinto uma fome animal de lhe ver.
Eu sinto as minhas entranhas revirarem-se,
Eu sinto náusea psicosomática,
Eu sinto o ar faltar, dispneia misturada à costumeira apneia do sono,
Apneia do sono desperto. Eu penso em ligar.
Você trabalha agora. Não lhe importunarei.
Eu só gostaria de que o seu tom de voz fosse sempre doce
E não frio, como ele pode ser às vezes.
Eu tenho medo do frio do telefone.

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Por Raphaël Crone.

domingo, 15 de março de 2009

[ ... ]

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[ Quem medirá o chapéu e a violência do coração dos poetas quando capturados e aprisionados no corpo de uma mulher? ] * [ Virginia Woolf ]

[ A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. ] * [ Manoel de Barros ]

[ Me desculpe, mas eu tenho que explodir. Explodir este meu corpo. Me levantarei amanhã, completamente novo. Um pouco cansado, mas completamente novo ] * [ Björk ]

[ Sou mais a palavra ao ponto de entulho. Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro chão, corrompê-las, - até que padeçam de mim e me sujem de branco. ] * [ Manoel de Barros ]


Escrevo pela mesma necessidade que outros tiveram antes de mim.
Pela necessidade de exteriorizar as minhas entranhas.
Visceral movimento auto-construtivo. Ou vice-versa.
Demolindo paredes e construindo paredes.
Escrevo pela necessidade inerente de falar de tudo ou nada.
De qualquer coisa ou algo em especial.
Escrevo por que isto me faz mais gente. Ainda que não o faça aos outros.
Escrevo em busca de redenção, que encontro.
Parole, mot.
As letras me trazem mais felicidade. Vai entender a vida...

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Por Raphaël Crone.

O Meu Pai

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Papai era muito rigoroso quando era jovem.
Jovem de 52, por que quando eu nasci ele já tinha 52 anos.
Ele é meu avô, pai do meu pai.
Este sempre morou longe e não me criou,
Apesar de termos contato frequente.
Papai agora tem 75, quase 76. Ele se tornou um velhinho bem afável.
Conversador e contador de "causos", coisas da idade, creio.
Me ama de um modo assombrosamente aberto
E eu amo ele em troca. Amo ele, sem pensar na gramática ruim.
Ele trabalhava na fazenda da família com a minha avó.
Ele está cansado e cheio de dores.
Outro dia, ele caiu de bicicleta na rua, quase foi atropelado.
Eu senti como se quem tivesse caído fosse eu.
Mas ele é forte também. Às vezes penso que até mais forte que eu.
Ele me ensina a ser homem. A ser digno e direito.
Ele me fez o que sou e me faz melhor a cada dia.
Ele me é a forma humana do que significa ser um bom exemplo.
Um orgulho maior que eu, pequeno que ainda sou ao lado dele.

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Por Raphaël Crone.

Ela Me Chama de Raphaëlzinho.

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[ Por que Deus permite que as mães vão-se embora?/ Mãe não tem limite, é tempo sem hora,/ luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba,/veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento./ Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio./ Mãe, na sua graça, é eternidade./ Por que Deus se lembra- mistério profundo -/ de tirá-la um dia?/ Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca,/ mãe ficará sempre junto de seu filho e ele,/ velho embora, será pequenino feito grão de milho. ] * [ Carlos Drummond de Andrade ]


Mamãe prepara a comida que eu gosto de comer.
A carne bem magrinha, purê de batata e doce para depois.
Mamãe na verdade é minha avó.
Quando ela era jovem, ela trabalhava na fazenda com o meu avô
E meu pai e minha tia ficavam na cidade, com parentes.
Ela cruzava rios tocando a boiada, plantava e colhia
E ainda costurava para fora.
Hoje, ela tem muitos problemas de saúde, mas ainda é bem forte.
Ela me trata como nunca pode tratar os filhos que saíram da barriga dela.
Ela me ama como eu nunca imaginei que alguém pudesse amar.
Ela tira da boca dela para me dar, se for preciso.
De vez em quando, sinto um nó na garganta
E daí eu abraço ela. Ela me abraça. Um silêncio.
Vejo a marca no seio que ela retirou por causa de um câncer
E a coragem com a qual ainda hoje ela enfrenta a vida.
Ela é linda. Ela é honesta e íntegra. Ela é fascinantemente simples.
E ainda assim, o lugar que ela tem em mim ninguém jamais poderá ocupar.
Nem mesmo eu. Uma ocupação vitalícia em mim.

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Por Raphaël Crone.

O Fio da Memória: Infância, Vol. I

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[ Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras/ À sombra das bananeiras,/ Debaixo dos laranjais! ] * [ Casimiro de Abreu ]

[ Vamos, não chores./ A infância está perdida./ A mocidade está perdida./ Mas a vida não se perdeu./ O primeiro amor passou./ O segundo amor passou./ O terceiro amor passou./ Mas o coração continua./ Perdeste o melhor amigo./ Não tentaste qualquer viagem./ Não possuis carro, navio, terra./ Mas tens um cão./ Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam./ Nunca, nunca cicatrizam./ Mas, e o humour?/ A injustiça não se resolve./ À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido./ Mas virão outros./ Tudo somado, devias precipitar-te, de vez, nas águas./ Estás nu na areia, no vento.../ Dorme, meu filho. ] * [ Carlos Drummond de Andrade ]


Eu observava a cidade do alto do prédio.
9 anos e 19 andares.
Elevadores e escadarias. Acessos restritos.
Via algumas raras árvores e não raros telhados sujos.
Tons pastéis suspensos no ar.
Desejava saber o que existia lá embaixo.
O submundo sobre o asfalto. Sadia curiosidade de menino.
Desejei por três dias.
No quarto esperei a faxineira ir embora e procurei a chave da porta.
Desci. Dobrei a esquina
E continuei dobrando outras mais. Empolgação!
Ua avenida grande abriu-se à minha frente.
Um viaduto, alguns mendigos. Carros, carros e carros.
Eita, São Paulo! Paulo Santo, eis que olho para você novamente.
Observei tudo e me sentei em frente a um quiosque do McDonald's quando me cansei de observar.
A tarde ia caindo. Hora de voltar.
Mas por onde eu voltava?
Como eu tinha boca fui à Roma. Cheguei a tempo,
Dez minutos depois meu pai chegava do trabalho.
Ele nunca soube da minha aventura, quinze anos já fazem.
Travessuras de menino. Mas uma lembrança valente.

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Por Raphaël Crone.

Antes de Sonhar.

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[ Havia um muro alto entre nossas casas./ Difícil de mandar recado para ela./ Não havia e-mail./ O pai era uma onça./ A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por um cordão/ E pinchava a pedra no quintal da casa dela./ Se a namorada respondesse pela mesma pedra/ Era uma glória!/ Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira/ E então era agonia./ No tempo do onça era assim. ] * [ Manoel de Barros ]


Quando a noite cai, não é só o escuro que aflora.
Aflora o medo do que é inominável e o palor da sombra.
Pálida, ainda que negra. Pálida em essência.
A face da donzela que bóia no céu, brilhante,
Espanta o menino que cá embaixo tenta adormecer.
Medos infundados. Fundações estremecidas.
Bichos-papões.
O armário sempre meticulosamente cerrado.
As janelas de vidraças grossas. O barulho da coruja na árvore lá fora.
Cretina!
Mas acima e abaixo de tudo, me vem o medo do eu-sozinho.
O entendimento de que você dorme sozinho e eu também.
O medo da saudade que no meio da noite me faz despertar.
Sim, medo da saudade, porque ela é o bicho-papão de quem já cresceu e ainda é menino.
Penso em como lhe comunicar minha lembrança eterna de você.
Penso em passar pela sua casa no meio da madrugada,
Penso em telepatia e encantamentos.
Uma mensagem do celular pode resolver. Escrevo e envio.
Imagino você lendo e sorrindo, em meio à noite do seu quarto.
Sorrio cá também e deixo de ter medo. Sou homem, ora.
Durmo e esqueço corujas, saudades e bichos-papões.
Resolvo e pronto: fecho os olhos e vou sonhar com você.

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Por Raphaël Crone.

sábado, 14 de março de 2009

O Que é Muito Amar.

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[ As coisas assim a gente não perde e nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas. ] * [ Guimarães Rosa ]

[ Eu escuto as cores dos passarinhos ] * [ Manoel de Barros ]


Gostaria de escrever sobre outras coisas,
Mas neste minuto que não passa me sinto tomado demais para pensar em algo mais que não você.
Eu vasculho os seus traços pelos cantos da casa.
Tomo uma vassoura entre as mãos e procuro ajuntar as suas pegadas, guardá-las em um pote e com elas sempre saber por onde você anda.
Eu o vejo brilhar nas gotas que molharam a grama verde. Vejo a sua graça nos arbustos do quintal e até mesmo nas abóboras que colho fora do tempo.
Eu acompanho com os olhos as moscas que rondam a casa e elas traduzem o que é um dia sem você por perto: uma insuportável melancolia.
Eu, que aprendi a amar o som da canção, a voz de minha mãe e o rigor de meu pai,
Aprendi a amar também o seu silêncio inóspito.
O seu modo sombrio de contar novidades, ainda que boas.
O mistério que você imprime aos fatos e os sobressaltos que meu coração dá quando você me abraça forte.
Amo o sofá em que me deito, enquanto escuto o dvd cantar sei lá o que para mim.
Amo a televisão que nos conta piadas e nos faz rir juntos outra vez.
Eu amo a camiseta branca de dormir e o travesseiro que me deita ao seu lado.
O seu cuidado com o meu sono e com o meu nariz entupido pela rinite.
Eu amo o seu perfume, incomumente parecido com o meu
E você ama o cheiro da minha pele, sem perfume e nem loção. Fur.
Amo a comida que você faz para mim e como me dá de comer.
Observo a sua análise interior, a sua racionalização do que é sentimento e seu veredito favorável.
Você pensa que não, mas vejo o seu medo de amar ir desaparecendo dia-a-dia.
Vejo os bordados do forro da mesa da cozinha e me divirto com o leite gordo da fazenda.
Me apaixono pelo seu retrato de criança e lhe guardo em minha carteira,
Sisudo e imponente, numa foto de trabalho.
Eu me enciumo de tudo o que você é, mas dou-lhe a liberdade de escolher ser meu.
Regozijo-me por possuí-lo (temeridades!) e regozijo-me em dar a posse de mim a você.
Não encaro estranhos na rua e abaixo a cabeça quando algum me encara.
Sou comprometidamente doado por própria vontade.
Lembro-me da noite que passei em meio ao escuro, quando em meio a um banho quente, a energia da casa caiu.
Meia-fase, quinze cigarros em seis horas.
O salvador abraço que me tomou no meio da noite, a sua chegada.
Eu amo-lhe, amo a sua integridade e o seu bom-senso.
O seu bigode volta e meia mal escanhoado e os seus braços finos.
Amo a forma como usa o seu boné e as calças apertadas que gosta de usar.
Quietinho em um canto observo-lhe.
Como se arruma para ir trabalhar, o esmero e o cuidado.
Cada fibra de meu coração se orgulha de você. Como a gata devora seus filhotes,
Eu lhe devoro, entranho-lhe em meu self.
Faço de você pedaço de mim, a parte mais bonita e digna de aprovação.
Eu me torno em verdade absoluta por você. Eu me torno em honestidade desmesurada.
Eu me apaixono por suas unhas e pelos cravos de seu rosto.
Você se apaixona pelos meus e, deitado em seu colo, você os retira um a um.
Quando a dor vem, seguro em seus braços e a suporto.
Você limpa os meus ouvidos e eu enfio o dedo no seu nariz para lhe provocar.
Assim como minha mãe, você não sente nenhum nojo e nem eu de você.
Não há nada desconhecido em mim para você e nem em você para mim [...].
Vestido ou despido, você me é carne e coração.
Muito mais que sexos e eras mitológicas.
Você e eu somos como os patinhos estampados no pano de prato.
A felicidade inocentemente infantilizada
E ainda assim somos o ser adulto, responsabilidades e enxaquecas.
Amo o seu silêncio e a sua gramática falha.
Me apaixono pela sua quase incapacidade de escrever textos poéticos.
Por ser tão diferente de mim e emotivamente calculado.
Amo o telefone que me traz você e a forma como arranha as minhas costas na cama durante a noite quente.
A sua capacidade de ser humano e de me levar além do divino sentimental.
Minha estrada está indissociavelmente ligada à sua. Alegrias.
Caminharemos como caminhamos. Veremos os dias passar como já vimos tantas vzes.
Você comigo e eu com você.
Observaremos a nossa juventude se esvaindo e nossa fresca beleza ficando para trás.
Você olhará para mim e ainda me amará, eu sei disso.
Isso me faz não temer a vida, medroso que poderia eu ser.
Coisa doida o tal do amor.
Quem nunca esteve com ele, pensa que não existe
E quando existe torna-se a razão maior de tudo o que é traço de vida e respiração.
Torna-se o paraíso e o inferno. O purgatório.
A redenção e a esperança de redenção.
As auréolas dos anjos e os animais incógnitos em torno do trono do Cordeiro.
Coisa estranha. Um agradecimento e um abraço.
É o que lhe dou a cada dia. Um amor incondicional. Frêmitos de gozo, emoções contidas.
Incontidas. O eu-sentimental e o eu-racional, juntos.
A imperiosa necessidade e o amoroso amor. Redundâncias, eufemismos.
Vinícius de Moraes nos cantaria, romanticamente.
Você e eu. Violões e canções francesas. Excentricidades. Este amor sem descrição.

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Por Raphaël Crone.

Um Romance de Eternidade.

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[ Viver é etecetera. ] * [ Guimarães Rosa ]

[ Tu tens um medo:/Acabar./ Não vês que acabas todo o dia./ Que morres no amor./ Na tristeza./ Na dúvida./ No desejo./ Que te renovas todo o dia./ No amor./ Na tristeza./ Na dúvida./ No desejo./ Que és sempre outro./ Que és sempre o mesmo./ Que morrerás por idades imensas./ Até não teres medo de morrer./ E então serás eterno. ] * [ Cecília Meirelles ]


Eu vejo a vida passar devagar quando me deito em seus braços.
Quando eu toco a sua pele nua e quando sinto o seu hálito junto à minha face.
Quando encosto meus lábios nos seus.
Quando sinto o envolver dos seus braços e o calor do seu corpo.
Eu sinto a vida me tornar mais moço quando conversamos sobre tudo - ou nada.
Quando planejamos o ano que vem e o que vamos comer no jantar.
Eu me pego supreendentemente emocionado.
Eu o observo enquanto dorme, sua calma e seu sorriso bobo.
E sei que você também me observa, quando durmo eu.
Percebo quando no meio da noite você me manda ir mais para o canto da cama
Porque eu estou lhe empurrando demais
E percebo quando, minutos depois, você me cobre e me beija, dizendo que me ama.
Finjo que durmo, mas escuto,
E dou pulos de alegria, ainda que sonolento, em meu coração apaixonado.
Nosso dias de novidade e nossas noites. Arroubos e melancolias.
Eu amo ser você e amo o modo como você me é.
Você é o meu coraçãozinho, ja disse outrora.
Amando como o amo, porém, nunca é demais repetir.

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Por Raphaël Crone.

Halo.

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[ Para todos os lugares que olho agora/ Sou surpreendida por seu abraço./ Querido, eu posso ver sua auréola./ Você sabe que é minha graça salvadora,/ Você é tudo o que preciso e mais,/ Isso está escrito por toda sua face./ Querido, eu posso sentir sua auréola,/ Rezarei para que ela não desapareça. ] * [ Beyoncé Knowles ]

[ Eu te amo, homem,/ hoje como toda vida quis e não sabia,/ eu que já amava de extremoso amor o peixe,/ a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado,/ onde tem o desenho cômico de um peixe/ — os lábios carnudos como os de uma negra./ [...] / Eu te amo, homem,/ amo o teu coração,/ o que é, a carne de que é feito,/ amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer,/ as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos,/ os fios de tua barba. ] * [ Adélia Prado ]


Por mais que eu me esforce por achar, por mais que eu vasculhe,
Por mais que eu o procure sobre a sua cabeça,
Por mais que eu esquadrinhe por entre os seus cabelos,
Eu não consigo encontrar. Eu não acho.
Eu não consigo encontrar o seu halo, nenhuma auréola existe.
Nenhum traço de santidade ou de divina sobrehumanidade há em você.
Nenhuma promessa e nenhuma eternidade.
Você é apenas homem, perecível e sujeito a erros,
Exatamente como eu o sou.
Engraçado como isso basta para mim!
Como eu amo a sua humanidade e a sua capacidade de perecer.
Como eu não desejo nada mais que isso, nem anjo e nem deus,
Mas apenas você, sem auréola e sem mistério.
Eu o amo porque você me ama, você me escolhe a cada dia,
Mesmo sabendo que não encontrará nenhum halo por entre meus cabelos.
Apenas confiando no meu amor e na minha constância me ama.
Como poderia não amá-lo então, por minha vez?

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Por Raphaël Crone.

Fisiologias.

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[ Cómo decir que me parte en mil/ Las esquinitas de mis huesos,/ Que han caído los esquemas de mi vida/ Ahora que todo era perfecto./ Y algo más que eso,/ Me sorbiste el seso y me decían del peso/ De este cuerpecito mío/ Que se ha convertío en río./ De este cuerpecito mío/ Que se ha convertío en río./ Me cuesta abrir los ojos/ Y lo hago poco a poco,/ No sea que aún te encuentre cerca./ Me guardo tu recuerdo/ Como el mejor secreto,/ Que dulce fue tenerte dentro./ Siempre me quedará/ La voz suave del mar,/ Volver a respirar la lluvia que caerá/ Sobre este cuerpo y mojará/ La flor que crece en mi,/ Y volver a reír/ Y cada día un instante volver a pensar en ti./ En la voz suave del mar,/ En volver a respirar la lluvia que caerá/ Sobre este cuerpo y mojará/ La flor que crece en mi,/ Y volver a reír/ Y cada día un instante volver a pensar en ti. ] * [ Bebe ]


Sem uma palavra que denuncie o ato, eu me atiro em você.
Eu me arrojo, turbilhão noturno, pensamentos longínquos,
O Lórien sentimental, pensamentos élficos.
Eu me torno fisiologia e anatomia por você. Eu me despedaço e me reconstruo.
Eu me torno em sangue e brasas,
Um caminho ardente por onde apenas você caminha.
Eu me reporto a mundos ulteriores e a verdades impenitentes,
Eu me dispo das sensações e pudores,
Eu me torno em carne nua e em verdade explícita.
Um vórtice imperioso, eu me arremesso em sua direção:
O aumento do débito cardíaco: sou sangue em muita quantidade para um minuto.
A frequência que se exarceba: taquicardia, taquicardia.
Monitorize-me urgentemente, por favor.
Às vezes penso que você me fará infartar. Que bobagem!
Eu venço a resistência periférica, eu me desvencilho dos obstáculos,
Eu chego até você. Eu venço a vida e venço a morte.
Fisiologias sentimentais, veja só.
Vasoespasmos, vasodilatação, vasoconstrição.
Sob pressão contundente, quase pontiaguda eu me atiro,
Sigo avante em sua direção. Um beijo de amor, escarlate e ácido.
Um pH menor que 7,35. Um gosto de ferrugem.
Ferro. Hemoglobina. Eritrócitos.
Eu me desvencilho da viscosidade que me envolve.
Eu me desfaço de meus elementos figurados e me torno plasma.
Eu me torno fluido, para chegar logo até você.
Sonhos fisiológicos, veja só. Não é bobagem.
Eu deixo para trás minhas hemácias, oxigenação e nutrição,
Eu deixo o que for necessário. Estou caindo.
Eu deixo meus leucócitos, minhas defesas abertamente indefesas.
Eu abandono plaquetas e princípios de coagulação.
Eu me torno em hemorragia, choque hipovolêmico,
Isquemias e necroses, eu me desfaço e me refaço por você.
Violentamente arremessado em sua direção,
Atraído por um chamado instintivamente maior que a vida e a morte.
Eu me faço volemia aumentada, ainda que sob estresse e perda.
Eu me faço mina de sangue, ainda que frente à ferida que verte e não cessa de verter.
Eu ignoro os obstáculos, ainda. Placas de ateromas, êmbolos, trombos.
Eu deixo os capilares, arteríolas, vênulas,
Eu tomo lugar nas veias cavas, aorta abdominal, torácica,
Eu chego ao seu coração e o paralizo:
Um frêmito misto de agonia e regozijo,
O palor da morte e o beijo da vida. Um minuto, dois.
Uma sístole impensada. Você vive. E eu com você. Eu me refaço, fisiologias.
Eu ignoro as dificuldades e me entrego, dia a dia.
Momento a momento, eu sigo até você e me atiro em seus braços.
Eu me faço e desfaço, eu nasço, pereço e renasço novamente.
Eu sinto o amor e me nutro dele. De você.
Eu enfrento a aventura da existência, desventuradamente perigosa.
Eu faço tudo e refaço por você. E vejo você se fazer e refazer por mim.
Fisiologias. E nada mais.

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Por Raphaël Crone.

terça-feira, 3 de março de 2009

Voto.

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[ Deixe chover,/ Deixe chover./ Por que não podemos encontrar o amor de novo?/ Deixe chover,/ Deixe chover./ Ainda me afogo em lágrimas de dor,/ Deixe chover. ] * [ Sarah Brightman ]


Ontem eu aprendi o que significa amar na alegria e na tristeza.
A tristeza profunda, a decepção cruciante, o pavor.
O espancamento da nossa fresca juventude.
Eu o amei naquele momento e hoje o amo mais.
Eu penso que o amarei por toda a vida.
Eu cuidarei dele e ele cuidará de mim, até que o mundo passe.
Nos banharemos na luz e na chuva, deixe chover.
Eu entendi que não sou ninguém sem ele aqui
E me fiz valente por meu amor.
Felicidades estranhas: eu o amo mais,
Eu me orgulho dele e eu caminharei com ele a segunda e a terceira milhas.
Até que a chuva passe.
Até que o mundo passe.
Eternidades.

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Por Raphaël Crone.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Regras.

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[ Às vezes quando você me toca,/ eu não consigo me controlar./ O desejo me torna fraco./ Querido, é tudo ou nada agora./ Eu não quero correr e não posso me afastar./ Você estaria partindo o meu coração se me deixasse agora,/ mas eu não posso esperar para sempre./ A quem você pensa que está enganando?/ Querido, é tudo ou nada,/ é tudo ou nada agora. ] * [ Cher ]


Não entro no jogo para ter medo.
Se existe algo no mundo a que me recuso é ser covarde.
Entro porque acredito e ajo acreditando.
Até o último suspiro eu tento. Tento e tento.
Essa a forma mais feliz de se viver.
Não se evita o sofrimento evitando a vida.
Princípios de guerra.

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Por Raphaël Crone.

Missa de Domingo.

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[ “Todos os deuses são um deus”, disse ela, então como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para as minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas as deusas são uma deusa, e há apenas um iniciador. E cada homem a sua verdade, e Deus com ela”. ] * [ Marion Zimmer Bradley ]



Não costumo frequentar as missas.
Não sou católico e nem mesmo sou cristão.
Mas como é sabido desde que o mundo é mundo
E onde há sabedoria se sabe,
Deus é Deus onde quer que estejamos
Independente do nome pelo qual o nomeamos
E a Mãe é sempre a Mãe, seja ela chamada de Maria ou Cibele.
Morando em uma cidade pequena, próxima a uma grande e antiga catedral,
Gosto de ir à missa de vez em quando.
Isso de certa forma sacia uma voz dentro de mim.
É estranho ver como um culto aparentemente morto,
Cheio de repetições e pessoas perdidas
No momento de entoar os cânticos e recitar os versos
Sem saber quando devem se sentar ou levantar,
Pode falar à alma, quando se busca ouvir com atenção o que ele sussurra.
O Pai é o Pai e a Mãe é a Mãe e eles habitam em corações, não em templos humanos.
Eles são maiores que nossa engenharia. E ainda assim, onde o invocamos, eles estão.
Se os deuses são invenção humana ou se nós somos invenções deles,
Não me preocupa muito saber.
Acima de tudo, a figura do que é Mistério representa a esperança.
É muito triste para nós vivermos sem esperança.
A vida deve ser fria e o amanhã, solitário.
Algo em que acreditar pode ser um consolo, mesmo para mim que, como quase todo mundo, às vezes não acredito em nada.
Coisas da vida. Uma nova existencialidade, discussão dos séculos.
A religião, sim, em meu conceito pode ser um erro. Os deuses não.
O que eles respresentam não: a caridade, o amparo, a amizade e o amor.
Coisas que precisamos ontem e precisaremos amanhã.
O mundo cai: cabe a nós sustentá-lo com nossos braços,
Como os titãs sustentavam a Terra nos tempos ancestrais.
Mas, onde está a força dos nossos braços, Mãe?
O mar é grande e meu barco, pequeno. Mostre-me a esperança.
Descerre-me o véu além do Samhain e ornamente-me com as flores da primavera.
Imbolc e Ostara. O calor, as fogueiras: Beltane.
O arrebol: Litha e as colheitas, o pão de Lugh. Lughnassad. Mabon, a cornucópia.
E Samhain, que tudo recomeça, de onde viemos e para onde vamos.
O incenso e os sinos, a batina dos padres e suas danações e salvações.
As irmãs que queimaram por mim.
Não há ressentimento, apenas há a oração do menino.
Ele está em todos os corações e Ela responde por todos os nomes.
É neles que me apóio. Um consolo que encontro quando a noite vai alta
E quando tudo está escuro, quando o amanhacer ainda vai longe.
Existencialidades, novamente. Palavras da salvação.
O Senhor está no meio de nós e a Senhora com ele.
E onde eles estão, em segurança estou também,
Filho e menino que sou da esperançosa magia que é acreditar no que não se vê
E aguardar. Respostas. Um ato de contrição.
Requiescat in pace. O réquiem de cordas. O final e o recomeço.
A Lua vai subindo e seguindo sua rota. E está em meu coração.
Pensamentos ao som da música melancólica e do piano frio.
O cheiro da fumaça. Uma vida e outras muitas não lembradas.
Muitas recordações e eu, ainda aqui, sentado.
Muitas vidas em uma noite de domingo.

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Por Raphaël Crone.

Poema Pobre de Aniversário.

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[ Salvo se formos cretinos, morremos sempre na incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra. ] * [ Gustave Flaubert ]

[ Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. ] * [ Clarice Lispector ]

[ O sonho encheu a noite,/ Extravasou pro meu dia,/ Encheu minha vida/ E é dele que eu vou viver/ Porque sonho não morre. ] * [ Adélia Prado ]


O passar dos anos pode ser perigoso?
A estrada costuma ir ficando mais escura ou os olhos mais cansados?
Tendenciosamente depressivo, o bicho humano.
Tendencioso e ingrato. Costuma esquecer-se do que é bom.
Depressivamente procura formas de não viver.
Creio que também deve haver virtude no passar dos anos. Deve haver redenção e aprendizado.
Consequente sabedoria.
Mesmo para um ainda jovem como eu.
A luz pode ser vista quando se tem olhos para vê-la,
Mas ela sempre existe, independente de nossa vontade.
As flores exalam seus perfumes, ainda que não os notemos.
O mundo continua o mesmo, ainda que o vejamos diferente
E diferente, ainda que para nós dê no mesmo.
Existe graça nessa tal de vida e a cada ano que me passa
Rio mais dela, mesmo quando ela ri de mim.
Quando choro, choro mais profundamente
E quando me levanto, o faço mais brilhantemente.
Armado de hombridade valente. Orgulho e reparação.
Há graça nessa tal de vida. Basta que nos disponibilizemos a rir dela.
Ela certamente se dispõe a rir conosco.

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Por Raphaël Crone.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Os Anos.

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[ E você é como um Jesus dos anos 90,/ Você curte suas psicoses;/ Como você se atreve?/ E você experimenta conceitos como quem escolhe canapés,/ E você come suas dúvidas como sobremesa;/ E é só eu que acho ou está quente aqui?/ Bom, pode ser que você nunca seja ou tenha um marido,/ Pode ser que nunca tenha ou segure um filho.../ Somos acordos temporários. ] * [ Alanis Morissette ]

[ Sou eu, estranhamente noturno. ]

O meu restrato de criança na parede do quarto.
Tomei-o entre as mãos. 4h57 da manhã.
Não sei bem exatamente por quê, mas,
Entre uma página e outra d'O Físico de Noah Gordon,
Chorei sobre este meu retrato infantil.
Duas amargas lágrimas molharam o papel.
Pensei que viriam outras mais, mas não.
Foram apenas duas lágrimas solitárias.
Contemplei a foto por mais um instante.
Tão eu ainda! O mesmo cabelo, apenas mais escuro agora,
A mesma expressão, quase 20 anos depois.
Guardei o retrato. Nostalgias. Existencialidades.

Um suspiro, um pensamento dissonante, uma conformação.
E O Físico continuou então contando-me sua história.
Sua longa trajetória. Medievalidades.

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Por Raphaël Crone.

A Ti, Padre.

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[ Lento em minha sombra, com a mão exploro/ Meus invisíveis traços. ] * [ Jorge Luis Borges ]
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[ Voy a curarte el alma en duelo,/ Voy a dejarte como nuevo/ Y todo va a pasar ./ Pronto verás el sol brillar,/ Tú más que nadie merecer ser feliz . ] * [ Shakira ]


[ A ti padrezito, mi corazón.
Tus ensenãnzas, tu honestidad.
Mi desesperado deseo de ser joven, de ser gente.
Tu monotonía, tu melancolia en el caer de la tarde,
Sueños que fueran tan brancos...
La forma como aprendi a volar, seguro por tus viejas manos,
Un rato de libertad. La inmortalidad de tus sonrisas,
Tus preocupaciones, la lucha por mi pan nuestro de cada dia.
Mio y tuyo. Nuestro. Nuestra sencilla felicidad.
Mamá, papá y yo, infante. Ella, tu y yo, hecho hombre.
Todo el Yo, mi reflejo en tus pelos tan blancos ahora.
A ti, padrezito. Mi amor, el beso que te doy,
Mi siempre terna reminiscencia.


La profundidad de tuyo océano particular, mayor que yo, tan pequeño.
A ti, padrezito, mi corazón. ]



***

O cheiro do café que você prepara de manhãzinha,
O acordar tão cedo, o admirar do canto dos pássaros...
Simplicidades arrebatadoras.
A invasão de todos os meus sentidos por sua voz tão terna,
Outrora tão rígida e imperiosa,
O afago de meu-seu ego. Id e superego, onde você habita em mim, papai.
As dores e o cansaço da velhice,
Uma vida de trabalho, o suor e as lágrimas por mim, para que eu fosse criança.
Os esforços incessantes para que eu fosse jovem.
As dores e privações para que eu fosse homem feito.
Minha tão-chamada ingratidão, imperfeitíssmo que sou.
Nem José Dias definiria-me melhor.
Meu tão constante desejo de lhe agradar! Eu sou você.
O formato de minhas mãos e de meus pés.
Os nós dos meus dedos, nós que somos tão iguais! Genética.
O orgulho que eu guardo e que você sopra em mim,
Um coração valente. O beijo e as lágrimas que honram sua encanecida fronte,
Meu presente, meu desejo: ver-lhe um sorriso mais a cada dia,
A razão de minhas tentativas, a frustração e o êxito de minha juventude efêmera.
A você, papai, o pouco que sou, o muito que você me tornou.
Meu amor e meu sorriso mais doce. A você.
A você, papai, meu coração.
A criança, o jovem e o homem. Infinita aceitação.

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Por Raphaël Crone.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Mundo Obsceno.

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[ Se não vivessemos perigosamente,/ tremendo à beira dos precipícios,/ não estaríamos nunca deprimidos,/estou segura disto,/ mas seríamos cinzentos, fatalistas e velhos. ] * [ Virginia Woolf ]
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[ Vivemos as nossa vidas,/ fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos:/ é tão simples e tão normal como isso./ Alguns atiram-se de janelas,/ ou afogam-se, ou tomam comprimidos;/ um número maior morre por acidente,/ e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou,/ com muita sorte, pelo próprio tempo./ Há apenas uma consolação:/ uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem,/ contra todas as probabilidades e expectativas,/ abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginávamos,/ embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas),/ saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras,/ muito mais negras e mais difíceis./ Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã,/ mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais. ] * [ Michael Cunningham ]


Às vezes, sinto necessidade de estar triste,
Assim como as outras pessoas têm necessidade de morrer.
Tudo às vezes.

Às vezes, o silêncio e a instrospecção doentia lavam-me por dentro,
Preparam-me para continuar a plantar,
Ou pelo menos, escondem-me dos meus bichos-papões,
Dos monstros do meu armário, carregam-me para um mundo particular, um mundo obscenamente irreal e maravilhoso
E me permitem dormir em paz por um minuto.

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Por Raphaël Crone.

Volta.

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[ Caríssimo,

---Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor.
---Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler.
---O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom.
---Quero dizer isso — toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida.
---Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

Virginia
]



Eu realmente odeio esta parte, mas ela se aproxima outra vez.
O mal dos poetas, o mal do século, o mal da morte.
Más-formações sentimentais, moralmente imprecisas, precisamente amorais.
A angústia, o aperto no meio da noite,
O terror noturno: o medo da solidão.
Você, que com braços tão vividamente amorosos me enlaçou outrora,
Você, que se preocupou com meu sono e meu apetite,
Você, que se fez um comigo; meu medo: onde está você agora?
A terrível bruma que toma conta da cidadela, o vôo rasante das harpias.
O som melancólico do piano e o som gutural da tuba,
Uma melodia candeciada e sepulcral, efemérides do que teve forma.
Esta deprimente onda que me varre, que me impede de deixar a cama,
Que não me permite pensar e nem escrever,
Que me faz fugir da luz do dia, que me faz chorar violentamente durante a noite.
Ela chega e toca meu ombro.
Sem pedir licença, ela adentra a casa, instala-se em minha alcova,
Faz uso dos meus objetos e lança sobre mim seu terrível encanto.
E eu me rendo a ela uma vez mais (a felicidade brinca de esconde-esconde comigo), leitor.
Deito-me ao lado do morcego negro, ele me abraça,
Eu gelo: tudo é entendimento e monotonia. Tudo é escuridão,
Sertões intransponíveis. Serestas mortas.
Eu odeio esta parte, mas ela me pertence. Devo alimentá-la, como bom pai.
Devo esperar a próxima primavera e por agora, apenas esperar.
Um novo dia onde eu possa voltar, uma nova volta,
Esperança que não existe, mas que, ainda assim, a minha imaginação não deixa de esperar.

[ INTRO: ] *Carta de Virginia Woolf a Leonard Woolf, adaptada por Michael Cunningham em seu livro, The Hours.
___
Por Raphaël Crone.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Onde a Vida Começa.

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[ Let me teach you how to fuck. ] * [ Madonna ]





A exibição de um corpo nú. Os corpos caídos ao redor.
O teor e a teoria do que é instinto e animalidade.
O que ninguém aprende, o que é nato. Incontestável.
A exacerbação dos sentidos, a volúpia dos ânimos,
O arrebatamento das sensações.
O gozo vigoroso e as vigílias continuadas,
O que é sexo, o que é fogo, o que arde,
Posto que é chama,
O que se multiplica e povoa a Terra. Passatempus.
A busca cotidiana. O vício e a virtude,
Antítese do que salva e de quem é Salvador,
Entrega feita pelas mãos do que é o Gênesis.
Luxúria, libidinosos momentos de união concuspicente,
O auge da mágicka e o encontro do amor.
Expressão de afeto e paixão desenfreada.
Eis o que é sexo: a vida, contínuo movimento,
A beleza da existência e o amor que se faz verbo e carne
E que vem habitar entre nós.


[ FOTO: ] *Madonna: "SexBook ", publicado em 1992, em suporte ao álbum "Erotica". Fotografia de Steven Meisel.

___
Por Raphaël Crone.

Au Maître Munch.

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[ Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol –/ o céu ficou de súbito vermelho -sangue –/ eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta –/ havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade –/
os meus amigos continuaram,/ mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade –/ e senti o grito infinito da Natureza. ] * [ Edvard Munch ]
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Existencialidades tétricas. / A erupção que acontece quando menos se espera, / A expressão mais angustiante do que é ser humano. / O caos interior, o domínio dos titãs. / O mergulho nos mundos de Mnemosine e a sega da foice de Hades. / A viagem além-Estige. / Um momento de desespero, um norueguês cosmopolita, / Um momento onde toda a humanidade para em virtude de uma semelhança universal: / A insuficiente segurança que é tentar se ocultar em meio à insegura escuridão da vida.

[ FOTO: ] * O Grito, de Edvard Munch (1893).

____
Por Raphaël Crone.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Retrato de Uma Queda.


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Não pense que não, eu vi exatamente.
Contemplei segundo a segundo a forma como você caiu.
Fui a testemunha mais íntima do modo como se operou a sua queda.
Vi suas pernas não serem fortes o suficiente para amparar o peso de seu corpo.
Vi o seu resvalar, o seu tropeçar,
O desesperado movimento dos seus braços para segurar o que já não tinha mais segurança neste mundo.
Vi o estrondoso silêncio e o abafado gemido produzidos pela vergonha de um momento de humanidade.
Senti em minha boca os fios de sangue que escorreram dos rasgos abertos em sua pele molhada.
O saibro de sangue, o amargor do ferro. Hemoglobina. Essências.
Permaneci impassível, imóvel, observei em sequência a chuva da rua lavar sua ferida e levar o seu sangue esgoto abaixo.
Não o ajudei e não o consolei. Não ajuntei seus livros espalhados
E não procurei secar seu maço de cigarros ensopados, inúteis agora.
Não evitei quando pisei seus óculos e senti um frêmito misto de agonia e gozo quando ouvi seus aros partirem-se sob meus pés confortavelmente calçados.
Não senti ódio e nem alegria e nem me rejubilei ou lamentei.
Impassivelmente silente e mortalmente imóvel.
Testemunhar: eis o significado do verbo que aqui não expressa ação, mas inatividade.
Nenhuma sombra de vida ou movimento de minha parte,
A vida relutantemente movimentando-se em você.
Antes de virar as costas ainda tive tempo de ver: o levantar-se, o ato de recompôr-se discretamente.
Você passou a mãos pelos cabelos desalinhados, procurou por seus óculos e soltou uma indivisível exclamação de lamento ao vê-los partidos no chão.
Limpou as roupas sujas, lambeu o sangue dos braços agora nús, pela licença que as mangas da camisa lhes concederam,
Empilhou os livros um a um e colocou-os sob o braço protetor e desprotegido de homem adulto.
Ignorou os cigarros imprestáveis e deu uma última olhada para a cena.
Suspirou: foi tudo o que eu pude ouvir, derradeira queixa.
Saiu, vagarosamente, direção oposta à minha e não olhou para trás.
Também eu apenas relanceei uma última vistoria, não sem um lampejo de sorriso nos lábios.
Vida engraçada! Não pude deixar de pensar sobre isto mais tarde.
Não pude deixar de compôr este ingênuo e soturno retrato,
O retrato de sua soturna e ingênua queda.

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Por Raphaël Crone.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sua Significação.

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[ Seu toque, seu gosto,/ Sua respiração, seu rosto,/ Suas mãos, sua cabeça,/ Você é doce./ Seu amor, seus dentes,/ Sua língua, seus olhos,/ Sua mente, seus lábios/ Você é ótimo, você é o paraíso na terra./ Eu esperei toda minha vida por você,/ Meu beijo favorito./ Sua pele perfeita, seu sorriso perfeito./ Acordo e você está perto de mim,/ Me aconchego em seus braços e volto a dormir./ Eu me apaixonei por você e por tudo que você é,/ Nada posso fazer, estou realmente apaixonado por você./ Quando você está perto de mim é como o paraíso na terra,/ Você é o paraíso,/ Você é o paraíso na terra. ] * [ Britney Spears ]
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O modo como você muda o meu dia: simplesmente fantástico.
De triste a exultante, de fraco a super-homem,
De tépido a muito quente,
De desconsolado a completamente esperançoso.
Meus pensamentos mais soturnos ganham asas e partem,
Muito distante posso divisar suas formas,
Outrora tão próximas e incômodas.
A dor mais pungente é consolada e remediada,
A ferida mais profunda deixa de verter sangue.
Você é a minha alegria e a minha salvação.
A quem temerei?
Seus braços e seu sorriso são a canção mais doce que alguém já entoou.
Você é o meu paraíso, feito para mim,
Privativo e escondido, onde não sou intruso ou estranho.
Minha praia de cinema, meu oceano particular,
Minha montanha mais alta e meus dias de impassível felicidade.
Me perco em seu abraço e durmo ouvindo o seu coração.
Me perco em outra dimensão e viajo com o povo das fadas,
Acordo e vejo um sonho feito real. Você dissipa a angústia
E sacia a vontade inclemente.
Alimenta o meu melhor e me faz ser bom, como você o é para mim.
Palavras não poderiam ser completas, para dizer o que meus olhos dizem a você.
Todos os clichês tornam-se inevitavelmente necessários e permitidos.
Você é o céu. Meu paraíso.
Definitivamente a quebra do meu submundo, a morte de Hades.
A ruína da escuridão e a luz primordial. A poesia em mim.
Você é o tudo. O imprescindível. O necessário.
Meu francês e meu espanhol, minha inocente virtude.
Objeto de zelo e adoração, meu pedestal e meu humano peregrino-companheiro.
Eu o beijo outra vez. Sigo beijando-lhe com lábios e lágrimas,
Pois me mostrou o amor mais belo, o sentimento mais puro
E a verdade mais impressionante que ninguém jamais poderia mostrar-me aqui.

[ FOTO: ] * Raphaël Crone - Dezembro/ 2008.

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Por Raphaël Crone.