terça-feira, 19 de maio de 2009

O Jovem Adam.

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[ Carro superaquecido,/ Pule para fora do meu banco,/ Para o lado da rodovia, querido./ Nossa estrada é longa,/ Sua influência é forte,/ Por favor, nunca desista.../ Eu sei que não te conheço,/ Mas te quero muito./ Todo mundo tem um segredo guardado,/ Mas será que é possível mantê-lo?/ Não, eles não conseguem!/ Dirigindo rápido agora,/ Não pense que eu sei ir devagar./ Onde você está agora?/ Eu o sinto por perto,/ Aí está você!/ Esfrie esses motores,/ Acalme esses jatos./ Eu te pergunto o quanto quente isso pode ficar/ E como você fará para secar essas gotas de suor.../ Lentamente você diz: "Eu ainda não cheguei lá". ] * [ Maroon 5 ]


Um segredo. Ella sopra em meus ouvidos uma corrente de outono, fria da noite:

[ Veja, poeta: uns pés de homem sob uma mesa, roçando umas pernas de mulher, mulher dum tal bruto marinheiro. ]


[ Pressuposto - Início da história: ]
A mulher - Ella - alta, cara limpa, magra e branca como a cera.
Uma miragem de Álvares de Azevedo, ultra-romântica.
Um minuto: como ultra-romântica, se ela come e mastiga a mágoa de não conhecer romantismo,
Posto que tal mimo foi-lhe negado?

[ Registro do poeta: Interrompo-me por um instante. A noite cai enquanto escrevo isto. Ouço um violão ao longe. E vejo fumaças de um bodoque. Ao longe. ]

Ela cospe fora na cara de seu marido velho, barbudo e fedorento o protótipo de amor bruto que ele soube lhe dispensar. Amores perros de Iñarritu.
Também são amores, apesar de diferentes em forma.
Não dizem que os brutos também amam?
[ O fio da história: ]

Eis que então um outro chega, jovem que é, e roça sua perna desnuda nas dela, desnudas, sob o nariz do marido, ocultas por uma mesa de pau ordinário, breakfast time.
Ordinárias tábuas que erguem a alcova adúltera, onde ela busca redenção
E, acredite-me, romantismo. Dinner time.
Uma vida esperando por um beijo furtivo entre as prateleiras da cozinha.
Um shake-hands dissimulado, que transforma-se em penetrações de sexual moralidade,
De cândida imoralidade e de amoral possibilidade de julgamento desapaixonado,
Sim, assim que a noite cai.
O marido é bruto, mas é velho, cansado. Ele precisa dormir cedo.
Laços desfeitos, buscas pela felicidade, insatisfações. Cantos piegas e dolorosos,
Segredo que outrem guarda a sete chaves e que o poeta, temerário, ousa desvendar:

-Eu mal lhe conheço,
Mas eu lhe desejo tanto!

O diáfano rosto da mulher do marinheiro. Austeridades.
Um desejo controlado de desvendar o que se esconde por detrás de um véu proibido, púrpura como o sangue que escorre-lhe, por vezes, por dentre as pernas.
Os anos da juventude que não morrem por inteiro.
As lágrimas não tem cor, por isso não deixam marcas no mundo.
O seu jovem Adam, objeto e instrumento de descoberta, libertação e pecado.
Penalidade e ameaça. O preço do que é pecado, ainda que pecado seja apenas uma palavra suja e inexpressiva.
[ Contextualizo-me, leitor: ]
Um segredo afinal. O que a mulher do marujo guarda, o que o jovem Adam guarda,
O que sabe deus quem mais lá anda guardando também.
Meandros recônditos, soturnos. Silvos de serpente e maldições os protegem.
Segredos. O peso que encerra a língua na boca,
A tranca que aprisiona a palavra.
Calabouços onde a alma se tranca por própria vontade.

[ ? ]




[ Nota: Texto livremente inspirado no filme Young Adam, de David Mackenzie, com Tilda Swinton e Ewan McGregor e na canção Secret, da banda americana Maroon Five, encontrada no álbum Songs About Jane. ]
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Por Raphaël Crone.

Com Meus Dentes.

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[ Decifra-me, ou te devoro. ] * [ Ésquilo ]


O piano de Philip Glass costuma cantar pra mim,
Assim como fotos velhas e quadros ainda mais costumam contar-me histórias.
Eu sou feito de arcaismos e modernidades,
Eu me enlaço em minha saudade,
Eu sou necessariamente feito de insatisfações.
Quando o lago de minha alma goza de placidez,
Eu arranjo logo uma pedra para torná-lo revolto,
Nem que seja para simplesmente contemplar um pouco do seu movimento,
Nem que seja para provocá-lo, quando o "exo-vento" nao o faz.
Eu preciso de barulho, de engrenagens, de palavras ferozes,
Eu preciso de saciedade, ainda que esta nunca me sacie,
Eu preciso de misericórdia, mas nunca de compaixão.
Eu sou a juventude, mesmo que ultrapassada.
Eu sou um parceiro eterno, porém trabalhoso.
Eu sou o que uma palavra minha jamais explicou.
Quem sabe, eu seja a Esfinge que devorava viajantes incautos.


[ Decifra-me, ou te devoro. ]
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Por Raphaël Crone.