sábado, 20 de abril de 2013
Amanhã
Nesta noite, depois de anos, num encontro fortuito, revi sua imagem.
Dobrando uma esquina zombeteira desta existência,
Deparei-me com seus olhos outra vez:
Um assombro, um estanque, um silêncio,
Que nada mais é que um tigre que cochila, atento, e o som que precede o rugido.
Em algum bar próximo, o trip hop de Cat Power ecoava abafado.
Teus olhos nada me diziam, os meus diziam tantas coisas,
Meu coração de metal derretido pelo calor da tua presença infeliz.
Toda a poesia, todo o doloroso desenlace que tivemos, ali, perante nós outra vez,
Todas as risadas, as nódoas de vinho na toalha rendada,
Todas as lágrimas exacerbadas, todo o turbilhão de sentimentos que consomem,
Toda a reverberação dos meus sentidos, que pulsaram feito toque de caixa.
Num minuto inesperado, deparei-me com o seu fantasma:
Desci ao inferno e retornei: um abismo que suplanta ego, id e superego.
Lembranças repassadas em cadência rápida,
Pequenos solavancos, pequenos terremotos em minha cabeça obnubilada por você:
Você deitado em meu colo naquele banco de praça, a insuspeita emoção que nos preenchia,
Célere em partir como foi célere em chegar. Uma peça do destino.
E pensar que quando pensava em você, eu era capaz de ouvir as cores dos passarinhos...
Manoel de Barros bem dissera, num dia ensolarado.
Um sorriso tímido e me fui. Deixei você atrás e não olhei novamente.
O trip hop melancólico de Cat Power ainda ecoando pelo beco escuro,
Os olhos marejados e a cabeça embriagada pela lembrança de vocêzinho:
Mas já não era pra ser e não seria: uma fortuita percepção e entendimento.
Carrego hoje ainda você na memória, imperecível.
Todo a francesa boemia que há em minha composição lhe reclama.
Carrego você como o fantasma, de mãos dadas com o meu, num sempiterno amanhã
E ao amanhã, esse deus de mistérios, lhe entrego uma outra vez ainda mais...
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Por Raphaël Crone
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